Maior tragédia da história do automobilismo, acidente que matou mais de 80 em Le Mans completa 60 anos

Um dia sombrio na história do esporte a motor completa 60 anos nesta quinta-feira: o acidente que matou 83 espectadores e o piloto Pierre Levegh durante a disputa das 24 Horas de Le Mans de 1955. As consequências da tragédia foram muitas, como o abandono das competições por parte da Mercedes e a proibição das corridas em diversos países

Nenhum dia foi tão sombrio na história do automobilismo quanto 11 de junho de 1955, exatos 60 anos atrás. Um grave acidente durante a 23ª edição das 24 Horas de Le Mans matou, de acordo com números oficiais, 83 espectadores e o piloto francês Pierre Levegh. Outros 120 ficaram feridos. Uma corrida jamais esquecida.

 
O grid estava relativamente equilibrado, mas a britânica Jaguar e a alemã Mercedes eram francas favoritas à vitória na corrida mais difícil do mundo. O desafio não era enorme apenas pela necessidade de se passar 24 horas seguidas na pista, mas também pelas enormes velocidades atingidas em Sarthe – em um tempo em que a segurança não acompanhava o ritmo dos carros e dos pilotos.
 
Em 1955, nas longas retas do circuito de Le Mans, os carros já atingiam a casa de 300 km/h. Qualquer acidente, portanto, teria proporções enormes. Infelizmente, foi exatamente isso que aconteceu.

Foi uma tragédia que teve muitas consequências, dentro e fora das pistas, como o afastamento da Mercedes do esporte e até mesmo a proibição da realização de corridas em alguns países.

Pierre Levegh e sua Mercedes (Foto: Reprodução)
Jaguar x Mercedes
 
Na pista, dois campeões mundiais de F1 na década de 1950 começaram a duelar ferrenhamente. O contexto do duelo, pelas marcas que eles representavam, ainda carregava componentes históricos bastante vivos na memória dos europeus: apenas dez anos haviam se passado desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e a antipatia entre ingleses e germânicos continuava bem quente.
 
O representante da Jaguar era Mike Hawthorn; o da Mercedes, Juan Manuel Fangio. A partir da largada, eles se mandaram na ponta duelando como se não se tratasse de uma corrida de 24 horas: travavam uma batalha digna de um GP, uma corrida 'sprint'. Foi assim que eles chegaram à 35ª volta, na terceira hora da corrida.
 
Hawthorn era o líder, e recebeu da Jaguar na reta que antecedia a dos boxes um sinal para parar e reabastecer. Sem querer dar mais uma volta, ele cortou para a direita logo após ultrapassar o retardatário Lance Macklin e brecou.
 
Os freios do carro britânico foram um detalhe determinante no acidente: ele já tinha a tecnologia de freio a disco, muito mais adequado às altas velocidades de Le Mans. Os demais, Mercedes inclusa, ainda usavam freios a tambor. Isso significava que não conseguiam desacelerar com a mesma rapidez da Jaguar.
 
Uma vez que Hawthorn pisou no freio, Macklin desviou para a esquerda e se colocou à frente de outro retardatário, Pierre Levegh, que guiava a outra Mercedes de fábrica. O francês de 49 anos não foi capaz de desviar, acertou a traseira do Austin-Healey de Macklin e decolou. As imagens são fortíssimas.
 
 
No impacto com o muro, a Flecha de Prata se desintegrou. O eixo dianteiro e o bloco do motor se soltaram e, com a altíssima velocidade do carro, voaram por metros em direção às arquibancadas. Espectadores foram esmagados e decapitados. Para piorar, pessoas também foram queimadas pelas chamas que se espalharam. O fato de a Mercedes ter componentes de magnésio, um metal mais leve, mas altamente inflamável, corroborou.
 
Corrida que segue
 
300 mil pessoas estavam em Le Mans naquele dia, e a versão oficial é que a corrida não foi interrompida porque os organizadores não queriam que as estradas ficassem congestionadas, atrapalhando assim o resgate das vítimas. 25 médicos estavam a postos no circuito, e nada preparados para algo como aquilo.
 
Fangio e seu companheiro de equipe, Stirling Moss, continuaram na corrida disputando a liderança com Hawthorn e Ivor Bueb. Oito horas mais tarde, a Mercedes decidiu se retirar da corrida com Fangio e Moss na liderança.
Enquanto em cima das garagens os espectadores tentam ver o que acontece, na cena da batida as pessoas fogem aterrorizadas (Foto: AP)
Um vídeo registrado na ocasião do 92º aniversário de John Fitch, companheiro de carro de Levegh, traz detalhes da decisão da Mercedes:
 
“Quando eu estava no telefone, um jornalista que eu conhecia estava falando com um jornal e disse que as informações indicavam que 65 pessoas estavam mortas. Fiquei chocado, pois não sabíamos, estávamos nos boxes. Sabíamos que tinha sido terrível, não tanto. Desci para os nossos boxes. Falei com Rudolph Uhlenhaut, diretor da Mercedes, e falei o que tinha acontecido. Disse: ‘Rudy, talvez não seja a minha área, mas pensando no que aconteceu na guerra, a Mercedes não deve ganhar essa corrida em cima dos corpos de não importa quantos franceses. Não é bom para as relações, não é bom para a Mercedes, não é bom para ninguém'. Ele foi ligar para a cúpula, voltou e disse que os diretores ficaram horrorizados. E então disse que ficou decidido que eles iam se retirar. Moss ficou furioso comigo, pois ele e Fangio estavam na liderança e ele achava que eles iam vencer. Mas superou, hoje somos amigos.”
 
Fitch morreu em 2012, aos 95 anos.
 
A Mercedes sugeriu à Jaguar que também se retirasse, mas a fábrica inglesa se recusou e ficou na pista até o fim, vencendo com Hawthorn e Bueb. As imagens dos dois comemorando com champagne no pódio renderam muita polêmica.
CAÇANDO OS CULPADOS

A busca pelos culpados começou imediatamente. Hawthorn, disseram pessoas próximas a ele, se sentiu culpado pelo o que aconteceu, mas não era todo mundo que pensava assim. Havia quem criticava Macklin pelo movimento brusco em direção à Mercedes, e também quem dizia que Levegh estava velho demais para guiar um carro tão rápido.

Fangio sempre defendeu o francês: de acordo com o argentino, Levegh teve reflexo suficiente para lhe fazer um sinal com a mão indicando a redução de velocidade, e assim o pentacampeão da F1 conseguiu escapar do acidente. Fangio foi grato pelo resto da vida. Christopher Hilton, autor de um livro sobre a tragédia, acrescenta um ponto sobre a atribuição de culpa a Levegh: ele estava morto.

Hoje, 60 anos depois e diante de todas as melhorias de segurança já vistas no esporte, dá para dizer que os pilotos foram os menos culpados.

A imagem acima é uma reconstituição em 3D feita pela BBC no documentário 'The Deadliest Crash', mostrando como era o circuito de Le Mans em 1955. A segurança do autódromo era precária. A reta era estreita e não havia separação entre os boxes e a pista. Ou seja, os pilotos que faziam pit-stops desaceleravam em meio aos que passavam a toda velocidade. Fora isso, o muro das arquibancadas tinha cerca de 1,5m, oferecendo proteção quase nula para os espectadores.

Três anos depois, Hawthorn foi campeão da F1 e decidiu se aposentar logo em seguida. Ele morreu em um acidente de carro em janeiro de 1959 em uma estrada do Reino Unido. Ironicamente, ao ultrapassar uma Mercedes. (Foto: Reprodução)

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O abandono

Não fazia mais que dez anos desde que a Segunda Guerra Mundial havia terminado após deixar para trás um rastro de destruição e desolação que jamais havia sido visto em escala global. Os seis anos da segunda parte do combate que começara na verdade em 1914 e com rancores que não se encerraram entre batalhas campais obviamente deixaram marcas muito mais profundas do que prédios caídos e dívidas a pagar. Deixou cicatrizes que persistiriam por um longo tempo.
 
Se Hawthorn, por exemplo, crescido em tempos de rivalidade mortal e latente entre Inglaterra e Alemanha, não conseguia aceitar a ideia de perder para a Mercedes, uma analogia muito próxima poderia ser aplicada ao público francês.
 
Absolutamente esmagada e com Paris tomada e sitiada há muito menos tempo que o necessário, a vergonha que começou nas trincheiras do exército francês contra a 'blitzkrieg' alemã talvez tenha sido a maior da história daquele país. E vivia ardente. 
 
Por isso ver Levegh, um herói do esporte francês, um homem que quase ganhou as 24 Horas de Le Mans sozinho anos antes, morrer e matar dezenas de outros franceses numa máquina de destruição alemã, um carro dividido aos pedaços pelo ar e em direção ao público, poderia ser simplesmente demais.
 
Após se manter na corrida por algumas horas, a Mercedes concluiu que vencer em tal situação seria um desastre de relações públicas num momento em que ainda reconstruía sua imagem internacional e a desassociava da guerra. Um momento em que a Alemanha inteira seguia tais passos.
 
Fangio e Moss, dois dos maiores da história, tinham uma vantagem brutal para Hawthorn e a Jaguar, duas voltas, quando chegou à decisão, por volta das 20h, de que deveriam encostar os carros e dar adeus.
 
As últimas duas corridas daquela temporada de 1955 aconteceram apenas em setembro e outubro, ambas vencidas pela Mercedes. Moss, nas duas; foi acompanhado por Fitch na Irlanda do Norte e por Peter Collins na Itália.
 
Ao fim de 1955, campeã também na F1, a Mercedes deixou o automobilismo, assim como fizera nos anos 1930. Só voltou, de fato, competitivamente e apostando altas fichas, no final da década de 1980. Então, já sem riscos de seu nome ser atrelado de qualquer forma ao nazismo.

Proibição e reabertura

Internacionalmente, o desastre também causou um levante. Na realidade – e nada anormal na história humana -, a tragédia fez com que uma onda em prol da segurança no esporte começasse. Mesmo o papel que Fitch assumiu foi um reflexo.
 
Mas o movimento veio também forçado pelos países. Mesmo na França, o esporte a motor foi banido até que os autódromos apresentassem maior segurança. Pouco após aquele 11 de junho, o pit-lane do palco das 24 Horas foi colocado ao chão e reconstruído. A não separação entre reta dos boxes e os pits era inaceitável. 
 
Assim como a França, a Alemanha adotou a mesma obrigação. Legalização só após renovação e reforço da segurança. Outros países também o fizeram, mas eventualmente foram checando a segurança aumentada e liberando o esporte a motor em seus territórios. 
 
Nos Estados Unidos, a Associação Americana de Automóveis também provocou mudanças e dissolveu o Conselho de Disputas, que cuidava das competições de automobilismo. Deu lugar então ao Comitê de Competição Automobilística dos Estados Unidos, um novo órgão com novas intenções.
 
Quase todos eventualmente permitiram o automobilismo a regressar. A Suíça, não. O país seguiu com o banimento a todos os eventos de esporte a motor em que há competição direta. Os eventos de subida de montanha e slalom, por exemplo, seguiram sendo permitidos. O Parlamento suíço deixou a proibição fora de discussões por anos, até 2007, quando passou uma emenda para terminar o banimento. Mas a emenda bateu no Conselho dos Estados da Suíça e travou, sendo descartada em 2009 após uma segunda negativa. Desta vez, a discussão batia mais em questões ambientais que de segurança.
 
Em março deste ano, no entanto, o mesmo Conselho dos Estados passou uma moção para que a Suíça possa receber eventos automobilísticos de carros com motores elétricos. Inclusive uma demonstração com a suíça Simona de Silvestro acelerando um carro da F-E pelas ruas de Berna selou o futuro que o país pode ter no calendário da nova categoria do automobilismo mundial.

Assista ao documentário 'The Deadliest Crash', da BBC, lançado em 2010:

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