Coluna Becketts, por Hugo Becker: O cara da TV

Para a esmagadora maioria de nós, fãs de automobilismo – independente de gostar ou não de F1 –, Ayrton Senna era o cara da TV. Seja vendo-o ao vivo para quem viu, ou nas infinidades de matérias e tributos exaustivamente veiculados para quem não teve a chance de acompanhar em tempo real sua história, o brasileiro era a celebridade inalcançável que em nada influenciava nossas vidas agitadas e sôfregas

Ayrton Senna em Ímola, 1994 (Foto: Getty Images)

Para a esmagadora maioria de nós, fãs de automobilismo – independente de gostar ou não de F1 –, Ayrton Senna era o cara da TV. Seja vendo-o ao vivo para quem viu, ou nas infinidades de matérias e tributos exaustivamente veiculados para quem não teve a chance de acompanhar em tempo real sua história, o brasileiro era a celebridade inalcançável que em nada influenciava diretamente nossas vidas agitadas e sôfregas.

 
O “ligar a TV nas manhãs de domingo” já virou praticamente um bordão da média que acompanhava um ídolo, não um esporte – e que diante dos acontecimentos consideravelmente chocantes do fim de semana do GP de San Marino de 1994, se negou a continuar assistindo aquele “esporte assassino”, como a categoria passou a ser vista. São muitos os brasileiros que largaram a F1 depois do 1º de maio.
 
É até compreensível o misticismo em torno da morte de Senna e dos milhões e milhões que endeusam o brasileiro. Além de tudo o que já se sabe a respeito – as grandes sacadas midiáticas, o forte apelo da Globo, uma nação arruinada que nele via redenção, a trágica morte ao vivo, as circunstâncias da morte, etc –, é preciso sempre considerar que Ayrton tinha uma legião de torcedores que beirou a unanimidade.
 
Usando uma comparação bem vaga para ilustrar, é como se um clube de imensa torcida como o Flamengo ou o Corinthians deixasse de existir de uma hora para outra. Algumas dezenas de milhões de brasileiros também se tornariam “viúvas” de seus clubes e relembrariam as glórias, diriam que “o Barcelona é bom, mas bom mesmo era o Mengão de 1981”, ou “se o Timão ainda existisse o Neymar jogaria lá”, e por aí vai. 
 
Passionalidade e nostalgia são características do ser humano – em especial, do brasileiro. O passado é sempre melhor e a morte sempre mistifica. Senna não é o único santificado após a morte, basta olhar para casos do seu próprio círculo social. Um avô que morre, um tio, um grande amigo. Milagrosamente, seus erros somem e seus feitos crescem. É assim na maioria das vezes, e essa característica também é uma defesa do ser humano. É para proteger, preservar e valorizar seu sentimento e sua memória. 
 
Posso me considerar um ponto fora da curva em alguns aspectos desse comportamento quase padronizado, porque se Ayrton foi o primeiro herói que tive na vida – o cara da TV, que brincava de correr e tinha um carisma que magnetizava facilmente crianças como eu –, sua morte foi, também, o primeiro contato real que eu tive com uma perda, algo que me ajudou a lidar de forma bem consciente com as sucessivas lacunas pessoais que eu teria no caminho até aqui, sem usar de hipocrisia.
 
Mas, mais do que isso: o fascínio em torno de Senna e da F1 no Brasil durante a minha infância teve efeito contrário após a morte do brasileiro. Ao invés de largar a categoria, passei a acompanhá-la com muito mais atenção e paixão. Eu tinha entre oito e nove anos, mas me lembro claramente do meu desejo de querer ver exatamente o ponto de partida da construção, do surgimento, de um ídolo da grandeza de Ayrton, a ponto de causar a comoção que causou nos quatro cantos do mundo após sua morte.
 
Nesse enfoque, sem perceber, defini minha profissão: jornalista. Devorava revistas de automobilismo, tinha um caderno com o grid e a classificação de cada corrida, na adolescência comecei a fazer relatos em um caderno e, quando ganhei meu primeiro computador, aos 15 anos, não tive dúvidas: criei um blog voltado somente para F1.

Voltamos a 1994.

 
Quando o cara da TV morreu na traumática Tamburello, o enviado da Folha de S. Paulo a Ímola – que também comentava a corrida pela Jovem Pan – vivenciou a cobertura mais intensa de sua vida enfrentando ao mesmo tempo uma série de questões pessoais e profissionais com seus empregadores. Veio a demissão, e ele então decidiu abrir sua própria agência, ainda em 1994: a agência Warm Up. 
 
Pouco depois, a Internet começou a dar seus primeiros passos mais, digamos, populares no Brasil, e a Warm Up ganhou um braço: o Grande Prêmio, que por seu pioneirismo e manutenção de qualidade, se tornou o maior site de automobilismo em língua portuguesa. Já são quase 20 anos de estrada, um deles comigo na equipe.
 
E foi muito, muito trabalho. Histórias fantásticas, coberturas memoráveis, matérias, pesquisas e entrevistas que renderam o maior prazer do mundo – e grande reconhecimento, também –, o convívio com referências que se tornaram parceiros de trabalho, depois colegas e amigos, muita galhofa, alguns desentendimentos naturais e, novamente – sendo redundante porque é válido – muito, muito trabalho.
 
Este intenso capítulo da minha vida chega ao fim na próxima quinta, 1º de maio de 2014, 20 anos após o ponto inicial da história, que começou de uma tragédia, quando o cara da TV, que nada tinha a ver com minha existência anônima, morreu.
 
A vida é engraçada, como se vê. Aprendi que é impossível captar o alcance em escala de cada ato, cada pensamento, de cada acontecimento – público ou privado, histórico ou não. Senna e Ímola determinaram uma parte relevante do percurso da minha vida. Comigo mesmo, me sinto confuso no papel de me ver tendo gratidão não apenas pela trajetória de um cara com quem nunca troquei uma palavra, mas também por uma tragédia que sempre afeta as pessoas de alguma maneira quando relembrada.
 
O mais importante – e nisso Senna certamente concordaria comigo – é que valeu a pena. Sempre vale. E no fim das contas, todos os finais são felizes do jeito que são.
Agradecimentos
 
Victor Martins, Flavio Gomes, Fagner Morais, Fernando Silva, Felipe Giacomelli, Juliana Tesser, Evelyn Guimarães, Gabriel Carvalho, Gabriel Curty, Pedro Henrique Marum, Renan do Couto e Rodrigo Berton. Este é o time com quem trabalhei, com uns por pouco tempo, com outros, por todo este período. Valeu pela parceria, amizade e infinitas risadas nestes 12 meses e obrigado, sobretudo, pelo pelo aprendizado.
 

Chamada Chefão GP Chamada Chefão GP 🏁 O GRANDE PRÊMIO agora está no Comunidades WhatsApp. Clique aqui para participar e receber as notícias da Fórmula 1 direto no seu celular! Acesse as versões em espanhol e português-PT do GRANDE PRÊMIO, além dos parceiros Nosso Palestra e Teleguiado.