Carta aberta para Le Mans, por Rodrigo Mattar

Até hoje não sei o que dizer desse encontro. Cada dia que faltava para o embarque ficava mais apreensivo para um momento tão desejado e aguardado. Só sei que não consigo esconder a emoção. Até porque tenho certeza que eu merecia, que sempre mereci, por empenho, por todo o trabalho desses anos todos

Caríssima e estimada Le Mans,
 
Você foi na minha vida um dos casos mais mal resolvidos que alguém como eu, apaixonado por automobilismo, poderia ter.
 
Anos 1980 (ou 1990, sei lá) e lá estava eu, num desses ‘Corujão’ da vida, varando a madrugada para, na primeira oportunidade que pude ter, assistir ao filme em que, mais do que Steve McQueen como protagonista, o brilho era todo seu. 
 
A história envolvendo a personagem Michael Delaney era segundo plano. A pista, ainda com o retão Les Hunaudières sem chicanes, com todos aqueles carros freando lá no 'Deus me livre' em Mulsanne, era a artista principal.
 
Eu já sabia que alguns pilotos brasileiros tinham estado aí. Que Christian Heins, o ‘Bino’, morreu num acidente trágico em 1963. Sabia do ‘Moco’, de José Carlos Pace, vice-campeão. Da aventura de Paulão Gomes, Marinho Amaral e Guaraná Menezes, que foram com a cara, a coragem e mostraram para a francesada que os nossos eram do ramo. 
Tri brasileiro fez história nas 24 Horas de Le Mans (Foto: Twitter)

Conhecia todas as lendas, de Jacky Ickx a Henri Pescarolo, passando por Derek Bell, Olivier Gendebien, Woolf Barnato, Tazio Nuvolari, Dan Gurney e tantos outros. A história do Ford GT40, o ‘Matador de Ferraris’. Mas também, todas as tristezas e tragédias. O desastre de Pierre Levegh, a morte de John Woolfe, a de Joakim Bonnier e depois as de Jo Gartner e Sébastien Enjolras.

 
Em 1997, já trabalhando como jornalista, acompanhei num ‘perto-longe’ o clima daquela corrida que teve vários brasileiros – entre eles o tricampeão mundial de Fórmula 1 Nelson Piquet. Foi possivelmente a primeira vez que me envolvi de fato com Le Mans. E o caso mais mal resolvido começava ali.
 
Os anos avançavam, a idade também. Amigos começaram a gravar DVDs com resumos das corridas — 2003, 2004, 2005. Assisti muitas vezes, várias vezes. Perdi a conta. E graças ao finado Orkut, minha cara Le Mans, você começava a não escapar mais de mim.
 
Foi uma doideira. Em tempos de nenhuma transmissão aqui para o Brasil, usávamos os tópicos de discussão de um grupo chamado "24 Horas de Le Mans" para, graças a links ‘piratas’, assistir à transmissão europeia e botar nossas impressões e comentários.
 
Em 2009, há exatos 10 anos, cometi uma loucura por sua causa, Le Mans. Passei um dia inteiro em casa, assistindo à corrida – inclusive de madrugada, numa friaca desgraçada, pela internet. Não me pergunte como, mas não dormi. Aliás, Le Mans, por você eu dançaria até tango no teto, como diz a canção.
 
E ao mesmo tempo em que acalentava o sonho de pisar nesse chão sagrado, a frustração tomava conta de mim — ano após ano, nenhum convite pintava, nenhuma porta se abria, as chances surgiam para outros.
 
Não para mim, Le Mans.
 
Sabe o que é receber um e-mail de uma antiga colega de trabalho lá por 2011, dar todas as dicas possíveis, imagináveis e necessárias — já que ela foi para La Sarthe como produtora — e depois saber anos depois, por terceiros, que se arrependeram de não ter me permitido conhecer você, Le Mans? 
Tom Kristensen é o maior vencedor da história das 24 Horas de Le Mans (Foto: Audi)

E de principalmente não ter presenciado a história reescrita com os nove triunfos de Tom Kristensen, o ‘Monsieur Le Mans’?

 
Pois é, aconteceu. 
 
E assim foi… em 2013, nem consegui te acompanhar direito. Estava ‘on the road’, num Rali de Carros Históricos. Não me queixo: me diverti um bocado. Mas senti falta de estar no clima e ter aquela intimidade que pouco a pouco nos foi deixando mais próximos.
 
No ano seguinte, o Fox Sports não transmitiu a corrida — que aliás já era exibida em partes pelo Speed Channel e pela própria emissora no ano anterior em que, no dia da largada, eu estava em Campos do Jordão — e foi na estrada que consegui saber da infausta notícia da morte do Allan Simonsen — porque tinha um negócio chamado Copa do Mundo aqui no Brasil. 
 
Paciência. Vida que segue, diria João Saldanha.
 
Sobre o Simonsen, a propósito: como pode, não é Le Mans? Você é um lugar de glórias, mas ao mesmo tempo, como qualquer pista do automobilismo que se preze, como qualquer templo, você não dá vez pra todo mundo, pra qualquer um, e ainda tira vidas. Ainda bem que em menor escala que no passado, porque felizmente a segurança dos carros e sua própria, melhorou e foi incrementada.
 
Aliás, é um acinte que sua reta, seu ponto de maior velocidade, tenha perdido o encanto justo em nome da danada da segurança. Te puseram duas chicanes em Les Hunaudières, onde certa vez um obscuro piloto, de nome Roger Dorchy, chegou a 407 km/h com um protótipo WM Secateva. Ficou um pouco sem graça — quase que como chupar bala com papel – mas Le Mans é Le Mans… e pra te salvar, qualquer coisa vale.
 
Ficou para 2015 o nosso encontro, ainda que a centenas de milhas de distância. E ele aconteceu. E foi tão bacana, tão legal. Pena que durou pouco.
 
No ano seguinte, Le Mans, você mostrou mais outra de suas facetas sutis. Mostrou que é você quem escolhe quem ganha, quem chega primeiro. Você sabia que a Toyota nunca tinha ganho nada no seu traçado e justo eles, os japoneses, choraram de tristeza ao perder para a Porsche faltando cinco minutos pra corrida terminar. Crueldade… 
Em 2016, a Toyota amargou a mais dolorosa derrota nas 24 Horas de Le Mans (Foto: Toyota)

Mas essa é a graça — e a dor do esporte também. Ninguém se lembra muito de quem perdeu, só de quem ganhou. Mas aquela derrota, ah, Le Mans, sua danada… doeu muito em todo mundo.

 
Ao mesmo tempo em que eu me enchia de esperança e depois vinham as seguidas duchas de água fria, em 2017 torcemos, vibramos e choramos juntos. 
 
Aquela foi uma edição especial da corrida: convenci que você, Le Mans, tivesse treinos de classificação exibidos ao vivo. Consegui que dessem 10h de espaço numa emissora de TV fechada — o que para qualquer categoria do automobilismo é muita coisa num único ano — para uma única prova, de vinte e quatro horas. 
 
Não tenho medo de dizer isso em primeira pessoa, porque batalhei mesmo pra isso e muita gente sabe.
 
Porque era você, Le Mans. 
 
Porque só você importava e mais nada.
 
Aliás, importava tanto que, uma infelicidade — dentre as muitas que são ditas diariamente em redes sociais – repercutiu tanto que eu me aborreci, me estressei e no final, bandeira quadriculada mostrada naquela — mais uma, aliás — vitória da Porsche, com derrota fragorosa da Toyota, eu não resisti e fui às lágrimas.
 
Só depois percebi o ridículo da coisa. O quão imbecil e tolo pareci naquele momento que várias vezes revi para ter certeza que aquilo mesmo foi real.
 
Sim, Le Mans. Foi realmente uma mistura de sentimentos. Raiva, alívio e principalmente alegria porque a corrida tinha sido sensacional. À sua altura, Le Mans, como você merece.
 
Nossa quarta vez 'juntos' na tela do Fox Sports foi ano passado. Nós: eu, você, Hamilton Rodrigues, mestre Edgard Mello Filho, mais de 250 mil espalhados pela pista, outros milhões no mundo inteiro, enfim vimos a caveira de burro da Toyota desenterrada, vimos o ‘Pink Pig’ redivivo aumentar para 107 o total de vitórias da Porsche… e André Negrão, meses depois da corrida, ser campeão aí, Le Mans.
 
Cada linha que aqui escrevo é com sinceridade.
 
E com sinceridade confesso: achei que nunca chegaria a minha vez de te conhecer.
 
Cada ano passando, cada vez mais um sonho distante.
 
Mas os sonhos não envelhecem. Nunca.
 
Começou 2019 e as esperanças foram renovadas. E transformadas logo em mais frustração. 
 
Mais uma vez eu não teria a chance de pousar no Charles de Gaulle vindo do Brasil, pisar primeiro em Paris, pegar o famoso TGV e sentir a energia de Le Mans, do jeito que tinha de ser.
 
Entre brincando e sério, numa conta de Instagram escrevi. "Gostaria de ganhar uma viagem para Le Mans de presente".
 
Veio o mês de abril. Começo a receber mensagens que soam como sinais de coisas boas a caminho.
 
"Tá com o passaporte em dia?", fui perguntado.
 
"Estou, mas não tenho visto para os EUA", respondi. "Para onde você vai, não é necessário visto de entrada", disseram do outro lado da linha.
 
Não demorou dez minutos e veio a notícia.
 
"Cara! Você vai para Le Mans!"
 
Um convite que veio como presente de aniversário antecipado. Para um sujeito como eu, perto dos 50 anos, era a melhor notícia que alguém tão apaixonado por você, Le Mans, poderia receber.
 
Até hoje não sei o que dizer desse encontro. Cada dia que faltava para o embarque ficava mais apreensivo para um momento tão desejado e aguardado.
 
Só sei que não consigo esconder a emoção. Até porque tenho certeza que eu merecia, que sempre mereci, por empenho, por todo o trabalho desses anos todos, não só no Fox Sports mas também nas colaborações com o GRANDE PRÊMIO — a ideia dessa carta, sensacional, foi do Victor Martins (obrigado!) – estreitadas nas últimas edições.
 
Pois é, Le Mans… nem sei como vou reagir, quando descer do trem que nos deixará vindo de Paris na sua gare. Eu acho que vou fazer que nem o Papa João Paulo II, naquela imagem inesquecível quando ele chegou ao Brasil, em 1980: vou ficar diante do portão principal, da entrada para o paraíso em que sempre quis estar, e beijar o chão em agradecimento eterno aos Deuses da Velocidade e a todos os que tornaram possível esse acontecimento.
 
Le Mans e eu… eu e Le Mans: fomos feitos um para o outro. 
 
E nada irá nos separar a partir de agora.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Pisei hoje no solo sagrado! Olha a multidão atrás…

Uma publicação compartilhada por Rodrigo Mattar (@rodrigomattar42) em

14 de Jun, 2019 às 6:27 PDT

 
Chamada Chefão GP Chamada Chefão GP 🏁 O GRANDE PRÊMIO agora está no Comunidades WhatsApp. Clique aqui para participar e receber as notícias do GP direto no seu celular!Acesse as versões em espanhol e português-PT do GRANDE PRÊMIO, além dos parceiros Nosso Palestra, Escanteio SP e Teleguiado.