FE ignora violações dos direitos humanos e mostra verdade inconveniente ao se render à Arábia Saudita: revolução é inumana

A Fórmula E representa uma novidade importante no automobilismo. É a expansão de novos tipos de tecnologias, importantes para a mobilidade urbana e a sustentabilidade na próxima geração. Mas a revolução cantada se resume a isso. Ao ir para a Arábia Saudita, a FE replica os maus hábitos da F1 de ignorar a questão humanitária. Ir a Riad é uma escolha que mostra que a diferença infelizmente não chega às questões humanitárias

A Fórmula E confirmou na última quinta-feira (17) que vai abrir a próxima temporada em Riad, na Arábia Saudita, em detrimento de Hong Kong, onde começou as últimas duas jornadas. No país mais poderoso do Oriente Médio, certamente com um pagamento especial para tomar o espaço de primeira corrida do ano, vai conseguir ter os olhos do mundo voltados para as ruas de sua capital política. Desta forma, a FE, com toda a sua modernidade, repete os erros que o automobilismo comete de forma recorrente: ignora a realidade.
Em seu GP às 10, Flavio Gomes tratou um pouco sobre a condição do país. A Arábia Saudita vive uma ditadura teocrata, com restrições sexistas inacreditáveis e graves violações dos direitos humanos. Mas é um país rico em petróleo. Não se trata apenas de um país rico, muito rico, mas também aliado até os dentes dos Estados Unidos.
O assunto Estados Unidos normalmente causa certa comoção dos leitores, então cabe explicar: os dois países nutrem aquilo que é uma Relação Especial, na linguagem diplomática. Uma relação especialmente próxima, de apoio acima de quase tudo, como aquela que o Brasil tem com Portugal ou o Vaticano com a Itália. Uma ligação quase fraterna. Estados Unidos e Arábia Saudita tratam-se assim há mais de 80 anos.
Durante quase todas estas oito décadas, a Arábia Saudita teve a maior produção de petróleo do mundo, além da mesma família real, os Saud, no poder desde 1932.
Embora os dois possam discordar em determinados assuntos – algo que ocorreu no decorrer no último século com poucas questões, as mais flagrantes sendo a criação do Estado de Israel e a Crise do Petróleo -, os desentendimentos são breves e rapidamente contornados. Dificilmente afetam negócios e, por isso, o país mais poderoso do mundo aceita com parcimônia marcante a forma como o regime saudita trata o mundo a seu redor.
A cidade de Riad (Foto: Reprodução/Twitter)
Por baixo dos panos do petróleo, a Arábia Saudita abuso a torto e à direita dos direitos civis mais básicos. Um dos disparates mais famosos é o impedimento das mulheres dirigirem. Embora tal lei tenha data marcada para cair, o próximo mês de junho, o fato disso estar sendo discutido em 2018 é um absurdo com poucos precedentes.
Mas não é apenas isso. Para ocupar qualquer cargo público, casar, obter passaporte e até ter acesso a serviços de saúde básicos, mulheres sauditas precisam ser tuteladas por um homem – normalmente um marido ou parente sanguíneo de primeira geração. Além disso, há um código de indumentária restrito: mulheres precisam usar uma abaya, espécie de vestido longo que cobre o corpo do pescoço até os pés, e véu.
Embora grave, o tratamento de mulheres é apenas uma parte do problema. A homossexualidade e o ateísmo são proibidos e passíveis de penas que vão de multas até chicotadas ou a morte.
Tudo isso é parte de algo maior. A religião oficial da Arábia Saudita é o wahabismo, uma corrente extrema do islamismo. Como maior potência do Oriente Médio, a Arábia Saudita acredita em expandir e internacionalizar o wahabismo.
A questão mais exposta pela comunidade internacional é que o wahabismo é também a origem dos ideais compartilhados por organizações jihadistas como o Estado Islâmico e a Al-Qaeda. A internacionalização compulsória do wahabismo é vista como um problema sério e que facilita o recrutamento de organizações terroristas com visão análoga.
Quinta temporada da FE terá nova geração de carros e abertura em Riad (Foto: Divulgação/FE)
Como não tem um código penal escrito, aplica a Xaria como lei nacional e, desta forma, faz a junção mais agressiva entre estado e religião. Como as regulações não estão escritas, tornam-se subjetivas e deixam qualquer cidadão a perigo de ser enquadrado numa acusação vaga. Um jornalista que critique a família real pode ser encarcerado por “distorcer a reputação do reino”, por exemplo.
Imprensa e ativistas também sofrem sérias censuras na Arábia Saudita.  Em janeiro deste ano, a organização Reporters Without Borders condenou a prisão de 15 jornalistas e ativistas sociais nos últimos meses do ano passado, quase todas elas feitas na surdina e sem informações oficiais divulgadas.
Há que se contar ainda os bombardeios, tidos pela Organização das Nações Unidas como ilegais, de uma guerra com o Iêmen que causa o maior surto de cólera já registrado no mundo. Segundo o Human Rights Watch, até setembro do ano passado mais de 2.000 pessoas haviam morrido e mais de 700.000 estavam infectadas pela doença no país vizinho, que tinha ainda cerca de 17 milhões de pessoas em situação de fome. Além da crise humanitária, a aniquilação militar que a Arábia Saudita tem imposto ao Iêmen está abrindo espaço para os grupos jihadistas já citados, sobretudo a Al-Qaeda, historicamente forte na área, ocupar a região.
Mas esse texto não é necessariamente sobre os absurdos perpetrados pelo governo saudita abraçado pelo Ocidente. É sobre os erros da Fórmula E, que prega revoluções, ser o novo, mudar o mundo e repete os mesmos vícios antigos de suas antecessoras. Não é necessário pensar na África do Sul do Apartheid, o exemplo mais grosseiro de como a F1 resolveu fechar os olhos e ignorar até os maiores absurdos sociais do mundo, ou mesmo as corridas na Argentina sitiado pelo regime militar.
A F1 segue no Bahrein (Foto: Renault)
O Bahrein representa a participação da F1 atual em conluio com regimes opressores. Embora o GP local tenha sido cancelado em 2011, então em meio ao eclodir da Primavera Árabe quando ameaças e protestos intensos fizeram as equipes pressionarem a F1, o Mundial voltou ao local em 2012 – quando uma bomba explodiu perto de um carro com membros da Force India. Nos anos seguintes, os protestos continuaram.
Em 2013, várias organizações não-governamentais pediram que a F1 cancelasse a corrida em meio aos novos protestos, mas Bernie Ecclestone ironizou a situação. Tamanha a revolta que o grupo de hackers Anonymous chegou a prometer uma vingança contra o campeonato. Dias depois da corrida, a polícia local confirmou que desativou planos de ataques em massa durante o fim de semana. Em 2014, os protestos chegaram até a serem marcados por morte.
De qualquer forma, a F1 jamais estudou novamente qualquer represália ao Bahrein. O regime barenita também é um famoso abusador dos direitos humanos internacionais e recentemente passou a dissolver correntes políticas opositoras e destituir membros do clero tidos como críticos de seus postos.
Mas a F1, sobretudo sob a égide de Ecclestone, era o que era e não prometia nada diferente. A FE, por outro lado, promete um admirável mundo novo. O que faz lembrar a famosa música da banda inglesa The Who, ‘Won’t Get Fooled Again’.
“Vou tirar o chapéu para a nova constituição, fazer uma reverência para a nova revolução, sorrir com ironia para mudança ao redor. Vou pegar o meu violão e tocar, assim como fiz ontem, e então vou ajoelhar e rezar. Não seremos enganados novamente”, diz a música. “Conheça o novo chefe, ele é igual ao antigo.”
A FE pode ser a revolução em energia e mobilidade urbana. Isso tem seu valor, é evidente, mas a grande mudança de atitude prometida deve na parte onde mais se faz necessária: a parte humana.
Não, a Fórmula E não poderia se render ao dinheiro de Riad. É inaceitável. É o mesmo de antes, de novo.
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