GUIA 2023: Ainda vidrado pela F1, Hamilton começa ano pressionado a bater Russell
Depois de conquistar mais que qualquer outro piloto na história da Fórmula 1, Lewis Hamilton ainda faz juras de amor. Mas não está livre da pressão que o cerca
É mais um ano na Fórmula 1 e a nova ordem de forças no topo do Campeonato Mundial deu pinta, nos testes coletivos de pré-temporada, de ter se estabelecido. A Mercedes não vai entrar em 2023, como foi em 2022, próxima da briga para vencer corridas. Sabe que está bem atrás da Red Bull e, provavelmente, também está distante da Ferrari. E Lewis Hamilton nisso? Começa o ano pressionado, ainda que sem qualquer expectativa de disputar o título mundial.
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Para encarar a situação que está posta, é importante que o automobilismo ainda seja um prazer para Hamilton. E assim é. Apesar de esticar desejos e preocupações para o lado institucional do esporte e assuntos muito além dele, mesmo que sabidamente tenha personalidade tremendamente diferente dos colegas, Lewis garante que ainda se sente um adolescente quando senta no cockpit de um carro da F1.
É dizer muito sobre a devoção ao esporte que ainda seja assim mesmo sete títulos, mais de 100 vitórias e 15 anos depois da estreia, aos recém-completados 38 anos de idade e numa equipe em situação difícil. Hamilton segue firme e quer permanecer: com contrato até o fim deste ano, fala sobre a ideia de renovar com a Mercedes e permanecer mais alguns anos. Quando os atletas são veteranos, um ano muda muita coisa e qualquer intenção de agora pode ser diferente em julho, mas, ao menos por enquanto, é pule de dez que o inglês vai renovar o contrato.
A paixão pelo esporte tem sido testada por quem deveria zelar por ele. Foi a FIA quem resolveu, por decisão do presidente Mohammed ben Sulayem, coibir as manifestações de cunho social dos pilotos. Um tipo de cerceamento incompatível com a abertura da Fórmula 1 e suas personalidades nos últimos anos, algo que trouxe uma nova geração de fãs aos autódromos e circuitos de TV.

A vexatória nota de explicação onde a FIA esmiúça o fechamento das possibilidades de manifestação se vale da falsa simetria entre defesa de questões ligadas à cidadania e de cunho social como se fosse político partidário, como se ferisse qualquer princípio de honestidade. Feio.
Hamilton faz questão de jurar: vai afrontar e continuar se manifestando da maneira como achar cabível, mas a marcação de pé da FIA dá a impressão de que o desgaste entre as duas partes pode ser forte demais ao longo dos meses. Nesse momento, está evidente: Hamilton não vai ceder, e a FIA não parece disposta.
“Não me importo se não ganhar outra corrida, vou falar sobre essas coisas, quer as pessoas gostem ou não. Há todas essas coisas que as pessoas acham desafiadoras em diferentes países, por meio de governos”, disse, referindo-se a países como Bahrein, Catar, Hungria e Arábia Saudita.
“Há tantas coisas que precisamos desafiar e consertar. E vamos a muitos países onde eles têm essas questões desafiadoras de direitos humanos, onde os humanos simplesmente não são tratados como seres humanos. O automobilismo, ou qualquer esporte de negócios, não deve continuar sem diversidade. Não há acesso suficiente para pessoas dessa comunidade [LGBTQIA+], não há acesso suficiente. E quando você já viu alguém trabalhando em nosso setor com deficiência?”, questionou.
O positivo para Hamilton é que a maioria dos pilotos tem se posicionado com ele e contra a estapafúrdia decisão da FIA. Mais que isso, Stefano Domenicali, presidente da Fórmula 1, também foi firme ao se pôr do lado dos pilotos. “A F1 nunca colocará uma mordaça em ninguém”, disse Domenicali, em entrevista ao jornal inglês The Guardian. “Todo mundo quer falar. Temos uma grande oportunidade pelo posicionamento do nosso esporte cada vez mais global, multicultural e de muito valor”, seguiu.
O heptacampeão gostou. “O apoio de Stefano tem sido incrível”, definiu.
Ter aliados contra um descalabro como esse, sobretudo colegas do grid e o campeonato, tendem a fazer com que o debate recaia menos sobre algum tipo de guerreiro solitário encampado por Hamilton. Mas ainda será duro para ele, claro, porque se trata de Lewis Hamilton. E ninguém é ingênuo o bastante para achar que a discussão não será feita em volta do piloto mais famoso e que acontece de ser também o mais engajado.

Aí, há a questão esportiva. A maior pressão sobre Hamilton para 2023 não é o título mundial. Já não seria normalmente, com um carro que é naturalmente caçador, mas os testes de pré-temporada trataram de abater qualquer possibilidade de uma reviravolta assim. A Mercedes está claramente bastante atrás.
Mas Hamilton tende a fazer as coisas de Hamilton. Voltar a vencer uma corrida, por exemplo, depois de 2022 representar a primeira temporada da carreira sem ao menos uma vitória. E, sobretudo, superar a corrida interna da garagem mercedista contra George Russell.
Em Russell, Lewis tem o primeiro rival interno de verdade em vários anos. Valtteri Bottas nunca representou algo assim nos cinco anos em que lá esteve, enquanto Nico Rosberg era contemporâneo e Jenson Button, mais de dez anos atrás e ainda na McLaren, era um piloto mais velho. É a primeira vez na vida que Hamilton está no papel de veterano sendo obrigado a vender mais garrafa vazia que um jovem muito mais disposto a gastar saliva.
Na primeira temporada dos dois lado a lado, Russell fez 35 pontos a mais que Hamilton, 275 a 240, e ainda ‘furou’ um dos pilotos da Ferrari para terminar o Mundial de Pilotos na quarta colocação contra o sexto lugar do companheiro de equipe. George também ganhou a única corrida da equipe na temporada, justo no Brasil, na penúltima prova de 2022. A distância entre os dois foi, sobretudo, fruto da regularidade de Russell, que soube lidar melhor com a questão dos quiques fortíssimos da Mercedes na primeira parte do ano.
Hamilton, depois, pontuou mais. E a partir do momento em que o carro passou a quicar menos, do Canadá em diante, foram oito pódios nas últimas 14 corridas do ano contra cinco de Russell. Destas, Hamilton ficou acima do terceiro lugar cinco vezes versus somente duas do parceiro. Houve uma inegável reação.
George não é um sujeito bélico em relação a Lewis e quer minimizar qualquer chance de desgaste na relação dos dois. “No final das contas, ninguém lembra que venci Lewis por pontos. Eu só terminei em quarto lugar, na terra de ninguém”, falou. Não é verdade, porém. As pessoas lembram, talvez mais até do que seja justo. Mesmo assim, é improvável que os dois passem a ter relação tóxica.

“Sou bem mais velho e estou com a Mercedes há muito tempo. Portanto, mesmo imaginando quaisquer desafios que surjam no futuro, já passamos por tanta coisa aqui que não acho que será um problema”, falou Hamilton sobre o companheiro. “Eu vi o que ele fez na Williams, acho que naturalmente tem de dizer que é impressionante o que fez em 2022, a consistência que teve, o jeito que chegou e teve impacto”, declarou. O duelo entre os dois vai acontecer, com certeza, mas será silencioso e sorrateiro, com ambos negando a todo tempo que sequer existe.
Por melhor que Russell seja, e é muito bom piloto, Hamilton ainda é quem centraliza as atenções. E por mais que o reflexo seja admirar o feito de Russell ao superar Lewis no campeonato, ainda mais vencendo a única corrida entre os dois, a sensação é de que houve grande diferença entre a qualidade de pilotagem de ambos ao longo de 2022. Não houve! Mas de Hamilton se espera perfeição, algo natural quando é hora de julgar o maior vencedor de corridas da história. É impossível estabelecer outro tipo de sarrafo.
Hamilton nunca foi derrotado duas vezes por um companheiro de equipe, que dirá em anos consecutivos. Portanto, é imperativo que retome as rédeas internas para seguir mostrando que é o melhor piloto do grid, carro à parte. É uma pressão que até pode parecer injusta, que Lewis tenha de provar alguma coisa à essa altura da carreira, mas é assim que o esporte funciona. São as bênçãos e maldições de se tornar uma lenda viva: lendas vivas não são derrotadas. Lendas vivas voam.

