Mundo continua igual, mas meio grid da Fórmula 1 cansou de brincar de solidariedade

O Planeta Terra é tão inaceitável em abril de 2021 quanto era em julho de 2020. Nada mudou no mundo, a não ser a paciência de brincar de solidariedade de papel

Muita coisa aconteceu antes do começo da temporada 2020 do Mundial de Fórmula 1, empurrado para julho e limitado ao segundo semestre por conta da pandemia do novo coronavírus. Tal era o contexto daquele momento que a Fórmula 1, trazida à baila pela postura da estrela maior da companhia, Lewis Hamilton, sentiu que deveria agir. A reboque, pilotos caminharam em conjunto. Menos de nove meses mais tarde, na abertura de 2021, meio grid se mostra desprendido daquilo, como se os problemas sociais tivesse sido dizimados com o badalar do sino do Vaticano que apontou o fim de 31 de dezembro. A solidariedade de papel vale de quê?

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Aliados aos impactantes efeitos da pandemia, o brutal assassinato de George Floyd e os protestos antirracistas suscitados mundo afora, inclusive com a participação de Hamilton e o envolvimento de inúmeros órgãos esportivos nacionais e internacionais, a F1 se sentiu compelida a soltar também a sua declaração de intenção sobre responsabilidade social: e surgiu o ‘We Race as One’, que trata da necessidade de maior diversidade.

Os pilotos vestiram as camisas que diziam para acabar com o racismo e ajoelharam antes das corridas ao longo do ano. Na primeira etapa, ficaram de pé Max Verstappen, Carlos Sainz, Charles Leclerc, Kimi Räikkönen e Antonio Giovinazzi dentre os que seguem no grid, além de Daniil Kvyat. Não chega a ser surpresa que estes mesmo cinco que seguem no grid ainda tenham exatamente a mesma atitude ou que Nikita Mazepin se junte a eles, mas o bicampeão Fernando Alonso e o novato Yuki Tsunoda entraram na barca.

O mais surpreendente, porém, é ver dois pilotos afiliados da Mercedes, Esteban Ocon e o titular da equipe alemã, Valtteri Bottas, também de pé. Desta feita, dividindo o grid em dois grupos de dez.

Após a primeira manifestação dos pilotos, em 2020, o GRANDE PRÊMIO publicou uma ampla análise sobre o que aquilo significava, tanto dos que decidiram se manifestar quanto dos que não. É importante recordar bem o que pensávamos naquele momento.

Lewis Hamilton com a camiseta “ações falam mais alto que palavras” (Foto: Andrej Isakovic/AFP)

Todo mundo é contra o racismo. É a frase mais apropriada para abrir esse texto não porque seja verdade, quem quiser impor algo diferente precisa tomar cuidado com o impacto da queda do alto de argumentos que não param em pé. Então, por que a frase é aplicável usada aqui? Porque dizer que é contra o racismo é fácil. O racismo é daquelas unanimidades: é ruim e você precisa ser contra. Assim, toda figura pública vai se dizer contra. Na Fórmula 1, inclusive. Mas palavras vazias voam de lá para cá e param em lugar nenhum. Após as poucas palavras expressadas nos últimos tempos, os 20 felizardos que fazem parte do grid tiveram a chance de uma manifestação concreta ao mundo antes do GP da Áustria. Nem todos aproveitaram. A decepção fica por conta sobretudo dos dínamos da nova geração: Max Verstappen e Charles Leclerc.

Antes de seguir em frente é preciso reconhecimento e identificação. Reconhecimento dos 14 nomes que ajoelharam no grid enquanto todos utilizavam camisetas pretas com a dita ‘end racism‘ – acabe com o racismo, em tradução livre: Vettel, Albon, Gasly, Norris, Pérez, Stroll, Russell, Latifi, Ocon, Ricciardo, Grosjean, Magnussen, Bottas e, claro, o líder Hamilton. A identificação fica a cargo daqueles que preferiram não fazê-lo e lá permaneceram de pé: Verstappen, Leclerc, Carlos Sainz, Antonio Giovinazzi, Daniil Kvyat e o campeão mundial Kimi Räikkönen.

A conversa é espinhosa. Quem cometeu o pecado de falar disso durante o domingo de manhã, recebeu toda a sorte de mensagens durante o dia, a grande maioria pouco educadas. Os tempos, sabemos, são bicudos: o ódio está em alta, a educação está em falta e quem viveu a vida sendo oprimido se vê cada vez mais sufocado num mundo que tenta dizer a todo instante que nenhum lugar aqui é deles. Sabemos quem são os perpetradores do horror e força motrizes da mais recente investida da eugenia. Não são inventores, percebam, porque a eugenia sempre foi cool para alguns, uma garantia da realidade econômica.

E é claro que ninguém vai atirar acusações contra o sexteto de pilotos que se negaram a manifestar, mas o primeiro ponto é que fica difícil entender o motivo de ficar de fora. Quando o movimento de ajoelhar ganhou popularidade no campo do esporte, nos Estados Unidos, em 2016, havia ali um protesto durante o hino nacional. O argumento de que era desrespeitoso à bandeira, o exército ou ao escambau era claramente muxibento, mas serviu de capitalização política e criou um álibi para quem se rejeitasse.

Os argumentos foram desbancados novamente na última onda de protestos globais, nascidos pelo assassinato brutal de George Floyd, homem preto, por um policial branco. Uma morte baseada numa suspeita – que se comprovou falsa – de que tinha roubado um maço de cigarros. Pensa nisso: quase 10 minutos ajoelhado no pescoço de Floyd por um maço de cigarros. As manifestações dos últimos meses serviram para desenhar porque a luta antirracista é inegociável.

No caso da Fórmula 1 e outros esportes mundo afora, não há hino ou possibilidade de revolta substancial, a não ser que contem alguns lunáticos roedores saídos das valas das redes sociais. Que o ato de ajoelhar no grid não faria o racismo acabar no mundo, o que parece ser o argumento principal dos sacripantas do Twitter, todo mundo sabe. A questão é uma demonstração concreta para as dezenas de milhões que assistem cada corrida mundo afora. Na Fórmula 1, a união de figuras de diversos países num carrossel que visita quase todos os continentes – com a África sendo incômoda ausência – é mostra potente.

O mundo está de olho numa resposta que podia indicar: entendemos o recado e estamos aqui, juntos, porque não há alternativa ao antirracismo. Em vez disso, ligou o alerta do ódio. Queiram ou não, o recado passou a ser: o antirracismo é opinião, posso querer fazer parte dele ou ficar distante.

O que se construiu ao longo da história é que o racismo é diabólico e que ou você é uma boa pessoa ou você é racista. É um erro e um desserviço. A afirmação que fazemos é categórica: todas as pessoas brancas do mundo ocidental são racistas. Dentre eles, os seis das canelas esticadas e 12 dos outros 14 – excluímos Hamilton e Alex Albon, um asiático não-branco na Europa. Dentre eles, você, branco, lendo e eu, branco, escrevendo. Somos racistas porque nos beneficiamos de uma sociedade que é máquina de moer pessoas pretas – e todas as outras minorias. Brancos são racistas. A sua decisão é que tipo de pessoa você quer ser: um racista em evolução ou um racista em putrefação.

Porque podemos nos dar ao luxo de ignorar as questões ligadas à desigualdade racial durante a infância, a adolescência, a faculdade, o que quer que seja. Podemos nos dar ao luxo de aprender em momento mais oportuno da vida, adultos, letrados, estudados, quando andamos com nossas próprias pernas. Lewis Hamilton não teve essa escolha. Sentiu na pele desde os mais tenros anos de kart, aposto todo o dinheiro que não tenho que viveu também antes disso. As pessoas pretas são bombardeadas na infância e na adolescência e entendem o problema, mesmo durante a juventude, muito melhor que qualquer acadêmico branco, por melhor intencionado que seja, será capaz um dia.

Conhecer as raízes é fundamental, mas sentir na pele é outro nível. E é por isso que é necessário seguir liderança pretas.

Se Leclerc e Verstappen tivessem se sentido minimamente compelidos a compreender – e tiveram tempo para isso, tenho certeza que sobravam alguns minutos entre uma corrida de videogame e outra no isolamento social -, não precisariam ouvir só Lewis. Podiam ouvir outras figuras, lideranças pretas que militam na luta contra o racismo Que aprendem, sentem e ensinam. E, se fizessem, teriam abraçado a manifestação. Em tempos da revolução da ignorância, porém, a opinião sente-se confortável a contradizer fatos.

A contrariedade ao ajoelhar, a manifestação clara, é vitória do achismo e deleite de quem quer preservar o direito de ser ignorante e, como bom ignorante, está confortável em contrapor fatos com bolhas de sabão. Não só os seis, mas os que se identificam com o esmagamento da razão mundo afora.

Hamilton é um personagem histórico por todas as razões certas, mas é importante reconhecer que não foi a única figura que deu orgulho: Sebastian Vettel, um tetracampeão que ainda não se manifestara, talvez por ser um fantasma das redes sociais, chegou à Austria com o ‘black lives matter‘ estampado no capacete. Vettel é sujeito inteligente, homem feito, vida pronta. Daniel Ricciardo foi outro que se manifestou de maneira mais contundente.

Fosse outro contexto, traríamos somente um link para o leitor acessar e se lembrar – ou ler pela primeira vez – a opinião de um ano atrás. Mas o assunto é inegociável e requer posição firme. A posição de 2020 precisa ser reiterada por representar a visão frente a uma realidade que segue intacta.

Desafiar o sistema de opressão colocado requer tempo e atenção. Arar o terreno para plantar mudança é fundamental daqueles que contam com uma plataforma tão grande quanto a da Fórmula 1, do bilhão de gente que alcança todos os anos com suas duas dezenas de etapas. Um ano depois de responderem que nem todas as ações estão no ato de ajoelhar, por exemplo, Verstappen e Leclerc seguem calados, sem apresentar qualquer alternativa à inércia. Alonso, campeão de muito tempo, um dos pilotos mais famosos do mundo, jamais tocou no assunto. Aproveitou que esteve fora em 2020, fingiu de morto e, junto a um grupo maior, resolveu não se manifestar também.

Sempre que se toca no assunto manifestação, uma das respostas que tradicionais é que ajoelhar nada muda no status quo do mundo. É verdade, mas é evidente que a atenção que se traz ao assunto, a visibilidade aos movimentos pretos e antirracistas é de um ganho inestimável. Para quem se orgulha de ter uma Copa do Mundo de duas em duas semanas, beira a cretinice argumentar que de nada serve se manifestar antirracista.

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Antes do começo da temporada, a FIA liberou os pilotos para que se manifestassem da forma que achassem cabível, ao passo que o novo chefão da Fórmula 1, Stefano Domenicali, chegou a exaltar o papel social dos 20 pilotos ao dizer que tinham de entender que são o rosto da categoria e “não podem se contentar apenas em guiar”. Ainda falou mais: “planejamos incluir um momento antes do início de cada corrida nesta temporada para mostrar o apoio unido em questões importantes.”

Foi uma crítica feita até por Lewis Hamilton um ano atrás, que a Fórmula 1 de Chase Carey, o lobista da morte da Floresta do Camboatá – empreitada em que, felizmente, fracassou – enterrava as manifestações em momentos encurtadas e com as câmeras constrangidas. De fato, no Bahrein, a Fórmula 1 estabeleceu um palco para a manifestação antes da corrida. Não apenas Hamilton respondeu: o tetracampeão Sebastian Vettel e o novato Mick Schumacher, filho de Michael, utilizaram camisas dizendo que “vidas pretas importam” e “a ciência é real”, entre outras coisas. A máscara de Vettel também trazia o movimento ‘Black Lives Matter’, coisa que tinha feito com o capacete já em 2020. Além destes, Daniel Ricciardo, Pierre Gasly, Lance Stroll, Sergio Pérez, Lando Norris, George Russell e Nicholas Latifi também ajoelharam.

A decepção fica sobretudo por Bottas, visto que a Mercedes se manifestou com vigor até na Fórmula E ao longo do ano passado – a fábrica mais preocupada em colaborar até agora. Talvez, para Valtteri, num ano crucial para sua carreira, onde aparentemente apenas o título vai o segurar na equipe para 2022, seja uma manobra esportiva: mexer com o psicológico de Hamilton, como fez Nico Rosberg anos atrás. Não vai funcionar. Era outro contexto, Rosberg afetava Hamilton de outras maneiras e, além do mais, era muito mais piloto que Bottas. A única coisa que o finlandês vai conseguir é irritar mais a Mercedes, que já deu uma chamada clara após as cobranças em Sakhir, e aniquilar as próprias chances.

O ‘We Race as One’ descartou a bandeira do arcoíris como símbolo, o que vale uma análise por si só, mas deu o palco e o espaço que se cobrou ano passado. Resta, porém, um movimento mais claro de gente importante. Alonso, Räikkönen, Verstappen, Leclerc, Sainz, esses nomes que importam, campeões, talentos, Ferrari, poderiam responder com atitudes conjuntas, entre si, que toquem o lado social, o antirracismo, e deixem de ser cobrados apenas por se ajoelhar ou não. Fato é que, apesar de manifestações pessoais claras de Vettel e Ricciardo, as atitudes que rompem a bolha dos dias de corrida parecem vir apenas de Hamilton. Ele é o líder, claro, mas é mais um piloto. Exigir que viva a vida de piloto, trabalhando esportiva e competitivamente para seguir o melhor, e ainda planeje e execute todas as ações de progresso, como a Comissão Hamilton pela diversidade, é um peso desigual e absolutamente injusto.

Talvez até por conta disso e por ver que os pilotos estão andando para trás em vez de para frente, Hamilton tenha decidido mudar de postura. “Foi algo que tive a experiência no ano passado. No começo do ano, fui muito franco e chamei a atenção do esporte. Na época, era a coisa certa a se fazer para mim, mas descobri que existem momentos em que você tem de ser muito diplomático, onde há mais coisas que você pode fazer por meio de discussões em segundo plano em vez de constranger as pessoas. Quais são as minhas opções? Eu poderia aposentar. O lado positivo é que não estarei pilotando um carro em 20 pistas diferentes, vou voar menos. Mas o fato é que, se eu parar, a coisa vai continuar. Eles não vão parar por mim. Estou conversando, tentando tornar as pessoas do esporte mais responsáveis. Estou constantemente enviando e-mails, participando de chamadas de Zoom com a Fórmula 1 e os desafiando”, falou em entrevista à revista inglesa WIRED. É uma postura louvável, mas está claro que o problema não está na forma de Hamilton se portar.

Aqueles que resolveram se manifestar na rebarba do assassinato de George Floyd e agora se calam, já que há menos protestos na rua pelo mundo e que a discussão se arrefeceu um pouco, mostra que não tinham muito a entregar. Nos Estados Unidos, enquanto isso, o estado da Geórgia, terra de Martin Luther King, trabalha para reverter o processo de direito ao voto conquistado nos anos 1960 com leis abjetas que, na prática, dificultarão sobretudo o voto da população preta do estado. Isso na esteira, claro, da fundamental vitória de Joe Biden contra Donald Trump no estado durante as eleições presidenciais de 2020. A intenção é clara: coibir o voto diverso. É um processo semelhante ao que se fez para apaziguar ânimos exaltados pós-abolição da escravatura dos EUA, ainda no século XIX.

O mundo é absolutamente o mesmo. A solidariedade é que era de papel.

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