Na Garagem: Hamilton vence GP do Japão encurtado por batida de Bianchi em trator
Jules Bianchi andava nas últimas colocações do GP do Japão, como era o costume a bordo da nanica Marussia, quando escapou do traçado molhado de Suzuka e acertou em cheio o trator de resgate que retirava a Sauber de Adrian Sutil da grama. Em virtude do acidente, Bianchi jamais acordou novamente e morreu nove meses depois
Há exatos dez anos, a Fórmula 1 voltou a se deparar com algo que parecia reservado apenas para as páginas mais tristes dos livros de história do Mundial, cheios de tristeza e melancolia. Todos os reforços de tecnologia e segurança para nunca mais ter de lidar com a morte tinham ares de intransponíveis, pois. Mas naquele domingo, 5 de outubro de 2014, um absurdo acidente no GP do Japão mostrou que a sensação de segurança inabalável era mentirosa. Jules Bianchi se chocou contra um trator que resgatava a Sauber de Adrian Sutil, acidentado instantes antes. Bianchi não morreu no dia — sobreviveu mais 9 meses —, mas jamais esteve vivo novamente. Acabava a trajetória de um dos mais talentosos pilotos de sua geração.
O fim de semana daquele GP do Japão já chegou cercado por complicações. O país sofria com a chegada do supertufão Phanfone, que colocou o evento em risco. Ninguém sabia ao certo quais seriam as condições no domingo, mas a situação tendia a se complicar na madrugada da segunda-feira. Sendo assim, não havia possibilidade de adiar a corrida em um dia: era no domingo ou nunca. A F1 sacudiu a poeira e resolveu que correria. Como o olho do tufão chegaria apenas horas depois, a expectativa de condições do horário da corrida, tarde no horário local, era de tempo complicado, porém sem tormentas.
Como de costume na temporada, a Mercedes dominou os treinos livres e repetiu o controle na classificação. Nico Rosberg colocou 0s2 em Lewis Hamilton, que sobrou em relação a Valtteri Bottas, o terceiro colocado. Ao lado do finlandês, Felipe Massa fechava a segunda fila toda da Williams. Fernando Alonso e Daniel Ricciardo, com Ferrari e Red Bull, formavam a terceira fila, enquanto a quarta era das McLaren de Kevin Magnussen e Jenson Button, enquanto Sebastian Vettel e Kimi Räikkönen, com Red Bull e Ferrari, fechavam o top-10. Entre as duas equipes nanicas, Marcus Ericsson foi o melhor, em 19º com a Caterham. Bianchi largava em 20º, à frente de Kamui Kobayashi e do companheiro de Jules na Marussia, Max Chilton.
Apesar da confirmação da prova, o domingo chegou com uma chuva torrencial. Uma tormenta com a qual o Mundial não está acostumado a lidar. A permissão para a largada se deu por conta da diminuição da água perto da hora da corrida — mas aumentou com os carros no grid. Na volta de apresentação, com um spray amedrontador se formando, Sergio Pérez chegou a rodar no setor dos ‘S’ de Suzuka ainda na volta de apresentação. Largada, então, com safety-car. Antes da bandeira vermelha ser tremulada, ainda no fim da segunda volta, a primeira vítima: Ericsson, que rodou no mesmo ponto que Pérez.
Todos voltaram ao pit-lane para que esperassem o momento de voltar. As imagens de rios pequenos se formando na pista, que apareciam desde a manhã, assustavam, mas novamente a chuva diminuiu. Após longa espera, uma nova largada foi organizada — com o safety-car à frente, claro. Ainda atrás do carro de segurança, Alonso foi o segundo a abandonar: a culpa, entretanto, da parte eletrônica da Ferrari.
Foram, ao todo, nove voltas atrás do safety-car. Os pilotos já imploravam nos rádios de suas equipes para que a bandeira verde aparecesse, algo que a FIA resolveu permitir. Na entrada da décima volta, Rosberg partiu enfim como o ponteiro que era. A cautela tomou cuidado da relargada, mas a pista melhorava. Tanto foi que Button e Maldonado partiram para os boxes em busca dos pneus intermediários. Como as Mercedes sobravam na frente, o resto do pelotão logo seguiu a ideia e foi atrás dos intermediários.
Uma segunda janela de pit-stops abriu entre as voltas 22 e 24 e, ali, a asa móvel estava permitida pela FIA. Button se dera bem com o pit-stop inicial e ocupava o terceiro lugar, mas Ricciardo e Vettel limpavam o pelotão intermediário com uma Red Bull bastante rápida.
Só que Rosberg e Hamilton faziam uma corrida à parte. Sozinhos e próximos, sabiam que em algum momento haveria ataque. Foi na volta 29 que Hamilton grudou no alemão na chicane derradeira e passou na reta. Logo, Lewis abria e conseguia vantagem fundamental na luta pelo campeonato. A sequência de paradas dos ponteiros embaralhou a corrida, mas Hamilton e Rosberg seguiam na frente, com Vettel, Ricciardo e Button na briga pelo terceiro posto. Vettel tomou um susto ao escapar nos ‘S’— Magnussen e Jean-Éric Vergne também haviam escapado no que era, apesar da menor quantidade de chuva, um ambiente ainda complicado.
A escapada de Vettel, na 38ª volta, foi um marco na corrida. Dali em diante, a chuva voltou a ganhar força como horas antes. E não tardou até que tudo corresse de uma corrida problemática e divertida a trágica. Na volta 40, Sutil escapou da pista após aquaplanar numa curva 7 dramaticamente empoçada. O trator de resgate entrou em ação para não deixar o bólido da Sauber largado em área de perigo e, assim, passou para a parte de dentro da barreira de proteção. Na volta seguinte, a 41, Bianchi sofreu com o exato mesmo problema: aquaplanou e perdeu o comando da Marussia #17.
A bandeira amarela foi acionada e a transmissão oficial de TV não elucidou a dúvida sobre o que havia acontecido, ao menos inicialmente. O acidente não foi mostrado ao vivo e, quando a imagem do local foi mostrada, a cena era do trator e do carro da Sauber. Amarela com duas voltas de atraso para aquela escapada de Sutil? Tudo ficou ainda mais confuso quando o crédito indicou que era Bianchi o acidentado da vez. Demorou alguns minutos para que surgisse a imagem do carro: o francês escapou e foi direto na direção do trator. O vídeo do impacto não apareceu, mas a gravidade ficou evidente no momento em que a equipe médica chegou.
Em seguida, após algumas voltas atrás do safety-car, bandeira vermelha. Era o fim da corrida após 44 das 53 voltas. Vitória de Hamilton, com Rosberg e Vettel fechando o pódio, mas pouco importava. Lewis quase nem comemorou. Estava evidente que era grave. Dias depois, veio a informação: a pancada teve uma violenta força estimada de 50 G, já que a Marussia vinha a 203 km/h quando aquaplanou.
Por conta do mau tempo causado pelo supertufão, Bianchi não teve como ser levado de helicóptero: foi de ambulância até o Hospital Universitário de Mie, em Yokkaichi, num caminho de cerca de 15 km e que durou 37 minutos a mais do que levaria pelo ar, segundo avaliação posterior da própria FIA. Os momentos anteriores à batida foram os últimos de Jules consciente. Desacordado após a colisão, foi levado da pista para o hospital após poucos minutos no centro médico de Suzuka.
As informações foram parcas nas horas seguintes, mas o diagnóstico apareceu no boletim médico divulgado na terça-feira seguinte: em estado crítico, Bianchi apresentava um quadro de lesão axonal difusa, conhecida como LAD, e que acontece quando o cérebro se move violentamente no crânio. No caso do francês, causada não pela pancada em si, mas pela violenta desaceleração forçada pelo impacto.
Na ocasião, o GRANDE PRÊMIO reportou que “estudos apontam que a LAD é uma lesão ampla e devastadora e que mais de 90% das pessoas ficam em estado de coma definitivo, segundo a Biblioteca Nacional de Medicina dos EUA. Caso se recuperem, sequelas como demência e ataxia, transtorno neurológico caracterizado pela falta de coordenação de movimentos musculares voluntários, são comuns. A lesão ainda causa um aumento de pressão intracraniana, daí o coma ser geralmente prolongado. Os casos apontam uma taxa de mortalidade relativamente considerável, de 33%.”
Jules foi submetido a uma cirurgia de quatro horas de duração com a intenção de minimizar o hematoma craniano e respirava sem ajuda de aparelhos, mas o estado seguia crítico. No hospital, recebeu uma enxurrada de visitas. Graeme Lowdon e John Booth, diretor-executivo e chefe da Marussia, respectivamente, chegaram pouco após a corrida. O então chefe da Ferrari, Marco Mattiacci, e Massa e Pastor Maldonado foram os próximos. Família e amigos de Jules chegaram no dia seguinte, vindos da França.
Dias depois a F1 encarava o GP da Rússia de forma sombria. Não havia uma resposta, a situação era das piores e mesmo assim a corrida estava lá. A Marussia chegou a registrar Alexander Rossi como substituto, mas preferiu deixar o carro de Bianchi guardado, como quem aguardasse o retorno de lugar guardado, e mandou apenas Chilton à pista.
Dias depois, Philippe Bianchi, pai de Jules, confessava: “A situação é desesperadora”, disse ao jornal italiano ‘La Gazzetta dello Sport’. “Toda vez que o telefone toca, nós sabemos que pode ser do hospital nos dizendo que Jules morreu. Falo com ele, porque sei que ele pode me ouvir. Os médicos nos disseram que tudo isso já é um milagre, ninguém teria sobrevivido a um acidente tão sério. Mas Jules não vai desistir”, insistiu. Ainda elogiou o interesse e solidariedade dos pilotos da F1, entre os quais citou nominalmente Massa, Alonso, Vergne, Hamilton, além das grandes estrelas da MotoGP, Marc Márquez e Valentino Rossi.
Nas semanas seguintes, Bianchi foi colocado para respirar com a ajuda de um ventilador mecânico e mantido em coma artificial até mais de um mês depois, quando voltou a respirar sozinho — o que permitiu a transferência do Japão para o Centro Hospitalar Universitário de Nice, cidade-natal de Bianchi, na França.
Em julho de 2015, após meses de sofrimento, Philippe Bianchi voltou a dar uma entrevista dramática. À rádio ‘France Info’, afirmou que a situação era “insuportável, uma tortura diária. Às vezes sinto que estamos enlouquecendo. Para mim, certamente é mais terrível do que se ele tivesse morrido”, falou. E admitiu a falta de esperança com a recuperação. “O tempo passa, e agora estou menos otimista do que estava dois ou três meses depois do acidente, quando sabíamos que poderíamos esperar por uma reviravolta. Em algum momento você precisa ter os pés no chão e perceber o quão séria é a situação.”
Quatro dias após a entrevista do pai, a notícia: a resistência de nove meses de Jules Bianchi chegara ao fim. Aos 25 anos de idade, o francês se tornava o primeiro piloto morto durante uma atividade oficial da Fórmula 1 desde Ayrton Senna, 21 anos antes.
“Jules lutou até o final, como sempre fez, mas ontem sua batalha terminou”, dizia o comunicado de imprensa divulgado pela família Bianchi.
O funeral de Jules foi realizado quatro dias mais tarde, em 21 de julho, na mesma Nice onde viveu e morreu. Lá estiveram todos os pilotos do grid de 2014 da F1, assim como outros mais antigos e mais novos, lendas do esporte, como Alain Prost. O então presidente da França, François Hollande, prestou tributo ao jovem piloto.
A FIA tomou precauções com relação à segurança. Criticada pela forma como utilizou o trator, mudou o procedimento ainda em 2014. No GP do Brasil, por exemplo, mudou o local em que utilizaria o trator no S do Senna caso fosse necessário. Ainda antes disso, o órgão principal do automobilismo formou um painel para investigar o acidente. Após um mês de trabalho, o painel concluiu que o acidente de Bianchi não tinha uma causa específica: incluía condições da pista, a presença do trator e velocidade em que estava o carro — essencialmente, culpou Jules. À época, Bernie Ecclestone, chefão da categoria, foi contra o relatório e culpou apenas o trator.
Concluiu ainda que o sistema brake-by-wire de frenagem, que deveria ser à prova de falhas, falhou. Foi quando a FIA trouxe de volta à tona, também, a conversa sobre uma proteção de cockpit – que terminou, anos depois, no halo. Como afirmou que Bianchi não diminuiu a velocidade suficientemente sob bandeira amarela, a FIA introduziu também safety-car virtual e sua função de controlar a velocidade dos pilotos em momentos de necessidade. A FIA ainda instituiu uma nova regra: nunca realizar atividades oficiais com menos de quatro horas de distância para o horário em que o local espera algum tipo de anomalia climática.
Em maio de 2016, quase um ano após a morte de Jules, a família Bianchi entrou com um processo contra F1, FIA e a Marussia. “A morte de Jules Bianchi era evitável. O Painel de Investigação montado pela FIA fez várias recomendações para melhorar a segurança na F1, mas falhou em identificar onde os erros foram cometidos na situação que levou à morte de Jules”, falou na ocasião Julian Chamberlayne, advogado da família. O processo, no entanto, não foi adiante.
A família criou mais tarde a Associação Jules Bianchi. A instituição veio com o intuito de apoiar as vítimas de danos cerebrais tratadas pelo hospital em Nice onde Jules passou os últimos meses de vida. Foi uma entre tantas homenagens que recebeu. Seu nome está, ainda hoje, na F1. Vettel, em sua primeira vitória pela Ferrari, em 2015, dedicou a vitória a Jules, bem como o companheiro de 2013 e 14, Chilton, quando venceu pela primeira vez na Indy Lights.
Campeão da F-Renault 2.0 Francesa, da World Series e da F3 Euro, Bianchi era o principal nome da academia de pilotos da Ferrari e marcou os únicos dois pontos da Marussia naquele campeonato de 2014 e na história do time. Tinha 25 anos.
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