Na Garagem: Piquet bate de propósito em Singapura e vira protagonista do maior escândalo da F1

Há exatos dez anos, no dia 28 de setembro de 2008, Nelsinho Piquet batia de propósito sua Renault, a mando de Flavio Briatore e Pat Symonds, na volta 14 do GP de Singapura. Tudo orquestrado para ajudar Fernando Alonso a vencer a primeira corrida noturna da história da F1

Singapura, 28 de setembro de 2008. A F1 realizava a primeira corrida noturna de sua história, sonho antigo de Bernie Ecclestone. Era também o GP 800 do Mundial. Mas o que ninguém poderia esperar era que aquele grandioso evento serial palco do maior escândalo na história da categoria. Na 14ª volta da prova, Nelsinho Piquet rodou e bateu de propósito na curva 17, em ação orquestrada pela Renault, sua equipe à época, em ato que ajudou Fernando Alonso a vencer a corrida. O espanhol jamais admitiu saber da tramoia orquestrada por Flavio Briatore e Pat Symonds. Indiretamente, outro brasileiro foi prejudicado: Felipe Massa. Há exatos dez anos.
 
É preciso voltar um pouco mais no tempo para entender melhor o contexto daquele escândalo. Em 2008, Alonso voltava para a Renault depois de uma temporada marcada por uma verdadeira guerra nos bastidores da McLaren, que havia o contratado a peso de ouro junto à própria Renault. Fernando não contava que Lewis Hamilton, novato em 2007, fosse tão bem, a ponto de rivalizar em termos de resultados e também quanto à atenção da equipe. 
 
Frente às câmeras, o ponto alto da tensão entre Alonso, Hamilton e Ron Dennis foi na classificação do GP da Hungria, quando o espanhol ficou parado por mais tempo no pit-lane antes de voltar à pista para fazer sua última tentativa de volta rápida, atrasando seu companheiro de equipe, que não teve tempo para buscar a pole. A guerra estava declarada. Mas o pior ainda estava por vir. Alonso revelou uma bomba atômica: uma troca de e-mails entre Nigel Stepney, chefe dos mecânicos da Ferrari, e Mike Coughlan, projetista-chefe da McLaren, revelando o vazamento de dados confidenciais do carro da escuderia de Maranello.
Nelsinho Piquet bateu de propósito no GP de Singapura de 2008 (Foto: Twitter)

Sem clima para seguir na McLaren, Alonso teve a ajuda providencial do velho amigo. Flavio Briatore lhe abriu novamente as portas da Renault para voltar à equipe que o consagrou como bicampeão do mundo. Mas o momento não era mais o mesmo para a equipe baseada em Enstone. A McLaren, com Hamilton como grande líder, rivalizava com a Ferrari do campeão Kimi Räikkönen e Massa como a maior potência do grid, enquanto a BMW aparecia como a terceira força, seguida pela Toyota. De protagonista dois anos atrás, a Renault sofria para encaixar bons resultados.

 
No GP da Alemanha de 2008, Nelsinho Piquet largou em 18º lugar, enquanto Alonso partiu da quinta posição. O brasileiro parecia não ter grandes perspectivas em Hockenheim e figurava no fim do grid. Sem ter nada a perder, o piloto do carro #6 da Renault jogou com a estratégia e só fez uma parada, na volta 35. Pouco depois do seu pit-stop, Timo Glock rodou com sua Toyota e bateu no muro da reta dos boxes, causando a entrada do safety-car. A maioria dos pilotos, que já tinha feito uma parada, realizou um segundo pit-stop. 
 
Assim, Nelsinho pulou para a liderança e quase ganhou a corrida. Restando oito voltas para o fim, Piquet foi ultrapassado por Hamilton, que triunfou em Hockenheim. Em segundo, o novato marcava aquele que seria o melhor resultado da sua carreira na F1.
Fernando Alonso venceu o polêmico GP de Singapura de 2008 (Foto:Twitter)

O acidente de Glock e o grande êxito na estratégia com Nelsinho serviram como inspiração para Briatore tramar uma ação orquestrada para beneficiar seu pupilo, Alonso. O palco escolhido foi justamente Singapura. Naquele fim de semana, a Renault teve um bom início de trabalho, com o espanhol liderando os treinos livres 2 e 3. Na terceira sessão, Nelsinho também foi bem e registrou o quarto melhor tempo. No treino classificatório, porém, o brasileiro foi eliminado ainda no Q1, ficando com a 16ª posição do grid. Alonso não teria melhor sorte, uma vez que teve de lidar com uma quebra no seu carro e não conseguiu marcar tempo no Q2, partindo do 15º lugar. A pole-position ficou com Massa, que era o vice-líder do campeonato, um ponto atrás de Hamilton (78 x 77). Lewis dividiria a primeira fila.

 
Até pelo fato de Marina Bay ser um circuito urbano de muitas curvas e de notória dificuldade para ultrapassar, somente um safety-car poderia embaralhar as cartas e dar chances de um bom resultado para a Renault. E foi justamente o que aconteceu, mas de forma totalmente premeditada.
 
Nelsinho, que chegou a rodar na volta de apresentação, começou a prova bem discreto, perdeu duas posições e caiu para 18º. Alonso, por sua vez, conseguiu evoluir um pouco no pelotão e chegou a estar em 11º quando foi o primeiro piloto da corrida a fazer a troca de pneus, o que aconteceu na volta 12. Fernando voltou em último lugar.
O reabastecimento de Massa em Cingapura-2008 (Foto: Getty Images)

Dois giros depois, Piquet bateu forte a traseira da sua Renault na saída da curva 17. Depois, soube-se por relatos do próprio piloto, que o ponto havia sido escolhido à risca por conta da dificuldade para retirar o carro e os detritos espalhados da pista. Diferente dos tempos de hoje, na época o pit-lane era fechado no momento em que o safety-car entrava na pista, Assim, Alonso levou muita ‘sorte’ e, de mero coadjuvante, pulou para a ponta voltas depois após as paradas de Nico Rosberg, então na Williams, Jarno Trulli, da Toyota, e Giancarlo Fisichella, da Force India.

 
Ainda durante o período de bandeira amarela, ocorreu um lance que ajudou a decidir o campeonato. Massa, que liderou as primeiras 17 voltas, foi aos boxes para realizar troca de pneus e reabastecimento. Mas a Ferrari, que inovava com o sistema de luzes — ao invés dos tradicionais pirulitos — para liberar os carros, falhou ao mandar Felipe acelerar. Isso porque a mangueira do reabastecimento ainda estava acoplada ao carro do brasileiro. A falha impediu que Massa sequer terminasse na zona de pontos, ajudando Hamilton, terceiro lugar, a abrir vantagem na luta pelo título.
 
Da volta 34 em diante, Alonso não teve adversários e partiu para sua primeira vitória em 2008, a primeira no seu retorno à Renault. À época, pouco se suspeitou sobre uma armação da equipe anglo-francesa. Até porque, na corrida seguinte, o GP do Japão, Alonso venceu com todos os méritos. E Nelsinho, que inclusive chegou a liderar a prova por algumas voltas, terminou na quarta colocação.
 
Bomba: o furo de Reginaldo Leme
 
Nelsinho Piquet ainda tinha contrato com a Renault em 2009 e seguiu formando dupla com Alonso. Contudo, a temporada foi muito mais difícil em relação ao seu ano de estreia na F1. O brasileiro teve como melhor resultado na pista o décimo lugar no GP do Bahrein, mas àquela época apenas os oito primeiros pontuavam.
 
Como consequência da falta de bons resultados, Flavio Briatore demitiu Piquet em meio às férias da F1. A última corrida de Nelsinho no Mundial foi o GP da Hungria. A partir de Spa, a Renault promoveu a estreia do promissor franco-suíço Romain Grosjean.
Reginaldo Leme deu a notícia em primeira mão sobre o Singapuragate (Foto: Reprodução/Instagram)
E foi justamente durante o GP da Bélgica que Reginaldo Leme, comentarista da TV Globo, deu uma notícia exclusiva de proporções nucleares. O ‘furo’ mundial do jornalista deixou incrédulos seus companheiros de transmissão da corrida em Spa, Galvão Bueno e Luciano Burti.
 
“Deixa eu aproveitar para dizer que tem um novo escândalo pintando por aí, Galvão. Que a FIA está fazendo uma investigação minuciosa entre os engenheiros da Renault, feita por uma empresa inglesa independente, e já tem depoimentos que incriminam Flavio Briatore por algo muito grave: ter premeditado aquele acidente do Nelsinho Piquet na 14ª volta do GP de Singapura em 2008, que deu a vitória a Fernando Alonso e inclusive mudou a história do campeonato. O Alonso fez o pit-stop na volta 12 e o Nelsinho teria de interromper a corrida de qualquer forma na volta 14 com a entrada do safety-car, e até o lugar da batida teria sido previamente escolhido, segundo alguns depoimentos e segundo algumas gravações do rádio que confirmam suspeitas. Os engenheiros da equipe, nem todos participaram, mas todos estão sendo investigados e há um clima muito ruim na equipe Renault”, revelou Reginaldo durante a transmissão.
 
A informação de Reginaldo era oriunda do contato com o tricampeão Nelson Piquet, pai de Nelsinho. O ex-piloto, que acompanhava de perto a carreira do filho, cobrou sempre condições iguais dentro da equipe para o jovem em relação a Alonso, que sempre foi o protegido de Briatore. O fato é que o dirigente dispensou Piquet Jr. depois do GP da Hungria. Nelsão tinha a carta na manga e denunciou o escândalo junto à FIA (Federação Internacional de Automobilismo), que iniciou uma investigação até então sigilosa, que foi revelada ao mundo por Reginaldo Leme na transmissão da TV Globo.
 
As consequências do Singapuragate
 
Após minuciosa investigação, que se desenrolou até o fim de setembro de 2009, a FIA deu seu veredito e baniu para sempre Flavio Briatore da F1, enquanto Pat Symonds foi suspenso por cinco anos. Nelsinho, por ter colaborado ao delatar o caso, escapou de punição, assim como Alonso, já que não havia evidências claras de que o espanhol sabia da tramoia que o beneficiou em Singapura.
 
A Renault foi duramente prejudicada e teve a imagem arranhada por conta do episódio. O banco holandês ING, que era o principal patrocinador da equipe, liderou a debandada. O time de Enstone, que demitiu Briatore e Symonds pouco depois que o escândalo tornou-se público, foi punido com dois anos de banimento condicional, ou seja, tinha até 2011 para cumprir sem nenhuma irregularidade grave para escapar da pena. 
 
A escuderia de Enstone, porém, acabou sendo vendida para a Lotus em 2011, só voltou ao grid como equipe cinco anos depois e tenta, desde então, reconstruir uma trajetória vitoriosa na F1.
Nelsinho Piquet foi o primeiro campeão da FE (Foto: Adam Warner/LAT)
Anos mais tarde, Briatore e Symonds obtiveram a liberação da suspensão para trabalhar na F1. O polêmico dirigente italiano chegou a aparecer no paddock em algumas oportunidades, mas jamais voltou a atuar de forma oficial no esporte, diferente de Symonds, que trabalhou na Manor e, mais recentemente, na Williams.
 
Nelsinho Piquet também jamais voltou à F1 depois que o escândalo foi deflagrado. O brasileiro reconstruiu sua carreira, expandiu seus horizontes e se mostrou como um dos pilotos mais versáteis do seu tempo, obtendo êxitos em modalidades totalmente distintas do automobilismo, seja nas divisões da Nascar, ralicross, endurance — como seu retorno ao Mundial e às 24 Horas de Le Mans —, além de se consagrar como o primeiro campeão da FE, em 2014/15. Atualmente, além de ser piloto da Jaguar na categoria dos carros elétricos, Piquet faz sua primeira temporada na Stock Car, representando a Full Time. O piloto, aliás, vem do seu melhor fim de semana no certame, com um sétimo e um oitavo lugares na etapa do Velo Città.
Já Alonso, sempre que questionado a respeito do caso, jamais admitiu ter ciência do que fora combinado entre Briatore, Symonds e Nelsinho. Pouco depois de a tramoia ter sido deflagrada, Alonso assinou contrato com a Ferrari, onde ficou por cinco anos. O espanhol, ainda que nunca mais tivesse conquistado o tão sonhado tricampeonato, sempre se colocou como um dos protagonistas do grid e também como uma das figuras mais controversas do esporte. Seu ciclo na Ferrari se encerrou em 2014 depois de rusgas com a cúpula de Maranello. A última aposta do bicampeão foi a McLaren, para onde regressou em 2015, graças também à Honda, que bancou seu polpudo salário desde então. Entretanto, a falta de performance dos motores japoneses e os seguidos problemas minaram a relação com fábrica. Tanto que o próprio Alonso foi um dos artífices do acordo entre McLaren e Renault a partir deste ano.
 
O veterano, que encerra seu ciclo na F1 ao fim da temporada 2018, depois de desbravar os novos horizontes em Indianápolis e Le Mans — onde venceu a segunda da Tríplice Coroa —, vai se despedir do Mundial com um carro empurrado por um motor Renault. Como foi no seu auge como piloto e como foi, também, na corrida em que foi diretamente beneficiado pelo escândalo de Singapura.

 
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