Opinião GP: 16 anos depois, Mercedes faz ‘remake’ de teatro da Ferrari. E ao ser igual, ganha para perder

A Mercedes e Lewis Hamilton tiveram nas mãos a chance de reescrever a história e dar ainda mais valor a seus nomes. Mas ambos escolheram o caminho tão aceito na F1. Só que, ao decidirem por ele, optaram por um comportamento pouco genuíno e a emenda fez mais mal do que bem

É CLARO QUE TUDO é devidamente acertado nos vários briefings que as equipes marcam durante o fim de semana de uma corrida. Absolutamente todas as situações são analisadas para discussão de estratégias, e daí surgem os planos A, B ou C. Assim que as luzes vermelhas se apagam, as situações começam a se desenrolar — na F1 de hoje, nem se pode dizer que se trata de uma infinidade porque muitas das coisas são previsíveis — e as cabeças teoricamente pensantes apertam botões para indicarem as decisões.

As decisões englobam informações, indicações e, no topo da pirâmide, ordens. As ordens geralmente se dão em detrimento de algo ou alguém e podem ser tomadas de súbito ou não. O rádio não é o local mais propício para discussões e insubordinações, então cabe aos pilotos afetados como devem agir. A F1 de hoje tem esportistas que não têm personalidade firme e acatam tudo muito facilmente, mesmo quando a ordem que escutam não surge de uma decisão digna. Aí, quando pulam do carro e analisam o cenário, demonstram um descontentamento teatral — quem vence alega que não queria aquilo e fala que o outro é o vencedor moral; quem perde fecha a cara e demonstra vitimismo.

Schumacher e Barrichello 'vermelhos' de vergonha no GP da Áustria de 2002 (Foto: AFP)
A corrida deste domingo em Sóchi se deu como havia acontecido 5.985 dias antes em Zeltweg. A troca de posição entre Valtteri Bottas e Lewis Hamilton não era necessária. Embora se entenda que ambos fazem parte de uma equipe que deseja fechar qualquer lacuna para neutralizar uma eventual reação da rival, a diferença na tabela de pontos e a significativa vantagem técnica na pista já anulam qualquer tentativa de justificativa. Hamilton será pentacampeão. Mas se esperava mais dele, fundamentalmente. 
 
O britânico de 33 anos possui uma carreira única na F1. Primeiro negro do esporte, quebrou paradigmas, tem uma imagem que vai além das pistas, é um dos maiores de todos os tempos e poderia ter dado um grande exemplo de sua magnitude. Cabia a ele também questionar a equipe, cabia a ele também mudar as regras do jogo. Peso e poder para isso já não lhe faltam. Esperava-se dele algo como um "eu não preciso desta vitória e não vou ultrapassá-lo". Ou, se tivesse, um "vou devolver a posição porque eu sou grande". 
 
Mas foi mais do mesmo. E piorou o cenário quando deixou o carro visivelmente incomodado com a situação, diante de um triunfo que não fez por merecer, ainda que venha em uma temporada espetacular. Tentou argumentar, defender a equipe e até trocar troféus com o companheiro de equipe. Horrível. É uma pena diante do que ele representa para o esporte. Ainda, ao aceitar a ordem e não devolver a colocação, Hamilton, então, deveria defender o que fez, celebrar a vitória e os 25 pontos na tabela.
Da Áustria-2002 para cá, a grande diferença é, naturalmente, a internet e o quanto o mundo se conectou para comentar, analisar e julgar. A reação contrária foi instantânea, e também isso fez com que o discurso das personagens envolvidas após a prova fosse alinhado na tentativa de minimizar os riscos. Mas os danos são muito mais expressivos que os de 16 anos atrás. Stories virão. Threads no Twitter explicarão. Mas a real é que Rússia-2018 tem seu Schumacher, seu Barrichello e seu Jean Todt.
 
Os atores mudam, o roteiro é o mesmo. O resultado é a tragédia e a degradação do esporte. Tudo em tempo real. Mas que o tempo vai demorar para apagar. 

Assumir a bronca também é um sinal dos grandes. É preciso também entender as consequências e encará-las. 

 
Semanas atrás, a Nike usou Colin Kaepernick em campanha linda demais, exaltando a coragem do jogador em enfrentar o status quo. Kaepernick não está mais na NFL, mas se tornou algo maior que o esporte pelo que ele defende. Sem entrar no mérito do seu ato, a Nike manteve o apoio e a marca cresceu em valor de mercado. 
Lewis Hamilton e Valtteri Bottas 'celebram' dobradinha (Foto: Mercedes)
A Mercedes está na F1 para vencer, mas, acima de tudo, é uma marca que está no mercado para, simultaneamente, ter valor e vender seus produtos. E tem dois esportistas na ativa, ou seja, não precisariam ser 'abandonados' para atrelar seu nome a eles. Seria nobre e valioso se sequer tivesse cogitado isso. Ou se, no fim da corrida, chegasse e falasse: "Lewis, trate de devolver a posição a quem merece vencer". 
 
Então, hoje estaríamos falando da mudança desse establishment. Mesmo que venha a perder o campeonato — coisa que não vai —, esse ato seria bem lembrado. Às vezes, perde-se e ganha-se muito mais. A Mercedes preferiu ser mais do mesmo: ganhou e perdeu.

O Opinião GP é o editorial do GRANDE PRÊMIO que expressa a visão dos jornalistas do site sobre um assunto de destaque, uma corrida específica ou o apanhado do fim de semana.

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