Retrospectiva 2019: Ferrari se vê em situação incomum com Vettel x Leclerc e falha

A Ferrari ousou em 2019 ao promover o jovem Charles Leclerc. E ao sair da zona de conforto, a equipe italiana acabou também se colocando em uma posição rara: a de ter de lidar com uma rivalidade interna. Apesar dos esforços em apagar as chamas, a escuderia cometeu erros e perdeu o controle

RETROSPECTIVA F1 2019
_F1 vive duas temporadas em uma, irrita e diverte ao mesmo tempo 
_Hamilton vive ano irretocável com hexa e atos de grandeza

_Mesmo com vitórias, ano da Ferrari fica marcado por trapalhadas
 

Era a vontade de Sergio Marchionne, e a cúpula da Ferrari não pode negar. O ex-presidente ferrarista, morto no ano passado, havia manifestado em diversas ocasiões o desejo de ver Charles Leclerc ao lado de Sebastian Vettel em 2019 – a ideia era clara: a escuderia precisava de uma renovação. E assim foi. Depois de apenas um ano de experiência na F1 com a Sauber, o monegasco foi promovido a titular da equipe italiana e passou a ocupar o lugar de Kimi Räikkönen. Apesar da ótima impressão deixada por Charles na estreia no Mundial, ainda pairava a dúvida se a decisão da Ferrari havia sido a mais correta. Afinal, além da aposta cega em um novato – ainda que ele pertencesse à Academia da marca italiana –, e o temor de prejudicar uma jovem carreira para sempre, havia o fato de que um movimento como esse não era lá muito do feitio ferrarista, que sempre optou por pilotos já experientes e, muitas vezes, campeões. O último a ter um caminho semelhante foi Felipe Massa, quando foi chamado para substituir Rubens Barrichello, em 2006. Ainda assim, o brasileiro já possuía bem mais quilometragem que Leclerc. A hesitação, portanto, era compreensível. E havia mais uma preocupação: como Vettel, vindo de uma temporada errática em 2018, reagiria diante de um novato já com tanta pompa? 

 
Bem, as respostas para todas essas indagações não demoraram. A verdade é que Charles estava muito melhor preparado para encarar a Ferrari e Vettel do que demonstrou durante as primeiras semanas em Maranello. A carinha de menino deu lugar a uma personalidade impertinente e altiva ao longo do ano, em uma mistura de mocinho e bandido. É claro que cedo ou tarde esse comportamento viria à tona na convivência com Sebastian, piloto número 1 e ainda centro das atenções. 
Sebastian Vettel e Charles Leclerc disputam a ponta do GP do Bahrein (Foto: Beto Issa)
E a primeira indicação de que Leclerc não fora feito mesmo para o papel de segundo piloto foi dada logo na corrida de abertura da temporada, em Melbourne. Embora a Ferrari tenha vivido um fim de semana bem aquém do potencial apresentado nos testes, o pit-wall foi obrigado a lançar mão de uma ordem de equipe, na tentativa de não desestabilizar o tetracampeão logo de cara. Vettel vinha em uma discreta quinta colocação no fim da prova australiana, quando Charles se aproximou. Mais veloz, o jovem queria a ultrapassagem, chegou a questionar a equipe e ouviu um não como resposta. Aceitou, mas aquele cenário não se repetiria mais.
 
Na etapa seguinte, no Bahrein, os carros vermelhos se apresentaram mais competitivos. E Leclerc foi lá, fez a pole e, depois de perder a liderança, foi para cima do companheiro de equipe, como quem já quer demarcar território. Portanto, sem pedir permissão. Não fosse a falha no motor italiano, Charles teria vencido em Sakhir, enquanto Seb cometia o primeiro grande erro do ano. Na China, um novo episódio. Desta vez, era Vettel o mais rápido, e a Ferrari fez Charles abrir passagem. No entanto, o rapaz bateu o pé, em uma atitude que ecoaria pelo restante da temporada. "Estou abrindo vantagem. Mas estou perdendo muito tempo. Não sei se vocês querem saber ou não, mas só para vocês saberem", disse, irritado, no rádio. A Ferrari ainda cometeria uma série de erros estratégicos naquela corrida, o que deixaria o jovem em uma longínqua quinta posição.
 
Apesar de todos os sinais nas primeiras provas de 2019, a equipe vermelha demorou a perceber o potencial para o desastre de sua dupla. E isso aconteceu porque o time se viu em apuros com um carro difícil e uma sequência de decisões táticas equivocadas, como no Azerbaijão e em Mônaco, além dos erros de seus pilotos, como no Canadá, na Áustria e na Alemanha. A Ferrari ainda fecharia a primeira parte da temporada sem vitórias e com um desempenho sofrível, o que apenas serviu para ofuscar a tensão interna e adiar uma decisão sobre o embate doméstico.
GP da Itália de F1, toda a festa ferrarista (Foto: Beto Issa)
Só que a volta das férias foi como uma segunda chance para os vermelhos. A SF90 trouxe mudanças importantes e, finalmente, pode desfrutar de sua maior característica: a velocidade de reta. E quem melhor aproveitou o momento foi Leclerc, que enfileirou poles e vitórias – as primeiras do ano para a Ferrari, sendo uma delas diante da enlouquecida torcida italiana em Monza. E foi na Itália também que a relação entre os dois ferraristas acabou tomando a forma de uma rivalidade de fato. Porque foi lá que Charles lançou o primeiro desafio a Vettel.
 
Ainda na classificação, Leclerc decidiu segurar o pelotão na última tentativa de volta rápida e se recusou em ceder o vácuo de seu carro ao companheiro de equipe, depois que Vettel já havia trabalhado bem em Spa, com a estratégia, assegurando o triunfo do jovem. Mas o competidor de Mônaco acabou “perdoado” pela chefia diante da conquista em casa. Mas, mesmo derrotado, Seb já começava a dar sinais de que não toleraria tal comportamento.
 
A corrida seguinte, em Singapura, marcaria uma queixa histórica via rádio. Leclerc saía da posição de honra do grid pela terceira vez consecutiva, mas uma estratégia certeira da Ferrari acabou por colocar Vettel à frente após os pit-stops. O dono do carro #16 ficou injuriado e mal conseguiu esconder a frustração. Teve de engolir, mas ficava claro ali que a Ferrari teria de lidar mais firmemente com seus comandados. A equipe chegou a chamar a atenção de Charles por conta do tom exagerado das queixas, e ele prometeu aliviar, mas a trégua durou duas semanas apenas.
 
A Rússia presenciou talvez o maior vexame da Ferrari em 2019. Largando como favorita e tendo Leclerc na pole, os estrategistas de Maranello acharam que era uma boa ideia promover uma inversão de posições entre seus dois pilotos, como forma de evitar um ataque de Lewis Hamilton no longo trecho entre o grid e a primeira freada. Sim, desta vez, Charles teve de dar o vácuo ao companheiro. Só que Sebastian se pôs mais rápido e deixou o jovem se queixando com o pit-wall, pois queria a liderança novamente. O que fez a Ferrari? Vendo que o tetracampeão não renunciaria à ponta, optou por promover a troca nos boxes, com uma parada mais lenta. Até daria certo se não fosse o abandono de Seb depois do pit-stop e uma sequência de safety-car virtual e física por outros incidentes. A Ferrari acabou chamando Leclerc no momento errado e o fez perder a ponta, entregando a corrida de bandeja à Mercedes.
Sebastian Vettel mergulha para superar Charles Leclerc na Rússia (Foto: AFP)
O comportamento dos dois pilotos ganhou as manchetes, e ambos foram novamente chamados pela cúpula ferrarista, mas o estrago já estava feito e era nítido também que o comando vermelho havia perdido o controle. Não havia mais mocinho e vilão, e a Ferrari já se via obrigada a lidar com a impetuosidade de Charles e a frustração de Vettel. É bem verdade que, após Sóchi, os ânimos se acalmaram, mas também por conta de novos erros ferraristas e da perda repentina de performance, depois dos questionamentos feitos pela concorrência quanto ao eficientíssimo motor de Maranello.
 
Mas a paz durou pouco, e coube a Interlagos escancarar de vez a relação desgastada dos dois pilotos. Uma disputa de posição já no fim da corrida virou um toque, que virou uma batida e um abandono duplo. As feições fechadas após o incidente apenas refletiam aquilo que todos sabiam há tempos: a Ferrari tem um embate interno e não sabe lidar com a situação.
 
A verdade é que a Ferrari vive agora uma situação incomum e que procurou evitar nos últimos anos. A demora em perceber essa condição acabou por agravar a rivalidade desenfreada, alimentou ainda mais o enredo do jovem e atrevido piloto que desafia o campeão, o que é natural e ótimo para o show. Mas a equipe falhou em momentos cruciais, quando decidiu, muitas vezes de forma desastrosa, interferir ou evitar um confronto entre os dois na pista. E cedo ou tarde vai pagar por isso.
Sebastian Vettel e Charles Leclerc se chocam em Interlagos (Foto: Reprodução)
Porém, há a chance de escolher: ou deixa ambos competirem livremente ou sucumbirá. 

Carregando…

Apoie o GRANDE PRÊMIO: garanta o futuro do nosso jornalismo

O GRANDE PRÊMIO é a maior mídia digital de esporte a motor do Brasil, na América Latina e em Língua Portuguesa, editorialmente independente. Nossa grande equipe produz conteúdo diário e pensa em inovações constantemente, e não só na internet: uma das nossas atuações está na realização de eventos, como a Copa GP de Kart. Assim, seu apoio é sempre importante.

Assine o GRANDE PREMIUM: veja os planos e o que oferecem, tenha à disposição uma série de benefícios e experiências exclusivas, e faça parte de um grupo especial, a Scuderia GP, com debate em alto nível.

Chamada Chefão GP Chamada Chefão GP 🏁 O GRANDE PRÊMIO agora está no Comunidades WhatsApp. Clique aqui para participar e receber as notícias da Fórmula 1 direto no seu celular! Acesse as versões em espanhol e português-PT do GRANDE PRÊMIO, além dos parceiros Nosso Palestra e Teleguiado.