Retrospectiva 2020: F1 acerta em cheio com pistas novas e faz calendário funcionar

A Fórmula 1 precisou se reinventar e pensar diferente para conseguir desenvolver um calendário viável e concentrado geograficamente na Europa e no Oriente Médio para realizar a atípica temporada 2020. Deu muito certo, e circuitos originalmente fora da programação como Portimão, Mugello, Istambul, Nürburgring e no anel externo de Sakhir entregaram grandes corridas. Isso sem falar de outro acerto: as rodadas duplas nas pistas de Silverstone e Red Bull Ring

É possível dizer com muita firmeza que a criatividade do Liberty Media foi decisiva para salvar o calendário da temporada 2020 da F1. Assim como aconteceu e tem acontecido no mundo todo, o esporte também foi muito afetado pelas consequências da pandemia de Covid-19, e na principal das categorias do automobilismo também não foi diferente. De um calendário original com 22 etapas previstas, nada menos que 13 foram canceladas. Nem corridas tradicionais como os GPs de Mônaco e do Brasil escaparam. Foi preciso desenvolver, a toque de caixa, protocolos que pudessem deixar os funcionários — pilotos, membros das equipes, imprensa e todos os profissionais envolvidos, direta ou indiretamente — isolados e protegidos e, de alguma forma, tentar viabilizar algum campeonato.

Com todas as equipes sediadas na Europa, ficou claro que o campeonato teria de ser baseado no Velho Mundo em sua maioria ou totalidade. E a solução encontrada pela gestão da Fórmula 1 foi levar o Mundial para alguns circuitos que sequer eram cogitados para integrar o calendário originalmente. Teve pista que estreou na F1, teve traçado que voltou depois de muitos anos, fim de semana com atividades apenas no sábado e domingo e teve também algo impensável tempos atrás: rodadas duplas com corridas em finais de semana consecutivos nos mesmos circuitos. Isso sem falar num inédito traçado de anel externo, no Bahrein. Tudo deu certo. Deu muito certo.

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GP DA TURQUIA; F1; FÓRMULA 1; LARGADA;
O GP da Turquia manteve tendência de boas corridas nas pistas novas (Foto: Racing Point)

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Pandemia, incerteza e cancelamentos: um cenário sem precedentes

Bem antes de o mundo sequer imaginar que a grande tragédia da pandemia seria uma realidade, a Fórmula 1 oficializou o calendário para a temporada 2020 com um recorde de 22 corridas. Com início previsto para 15 de março, como é tradição, com o GP da Austrália, a programação tinha como grandes novidades o GP do Vietnã, marcado para 5 de abril, e o GP da Holanda, voltando a receber uma prova do Mundial desde os anos 1980, em 3 de maio. O desfecho estava agendado para 29 de novembro no circuito de Yas Marina, em Abu Dhabi.

Os primeiros casos do novo coronavírus, na Ásia, acenderam o sinal de alerta. E o aviso de que 2020 seria mesmo atípico e estranho veio da China, primeiro epicentro da Covid-19, que ainda em fevereiro anunciou o adiamento da corrida, então marcada para 19 de abril em Xangai. Nos testes de pré-temporada, de somente quatro dias, em Barcelona, equipes e pilotos começavam a se preocupar com o avanço do vírus na Europa e tomavam as primeiras medidas.

Em 11 de março, quando a Fórmula 1 já estava na Austrália para a primeira etapa do campeonato, a Organização Mundial de Saúde declarou oficialmente a Covid-19 como pandemia, tamanho o seu alcance em vários países do planeta. Quando desembarcou em Melbourne, a F1 se deparou com um clima de tensão e incerteza no ar. Autoridades locais já defendiam o cancelamento da etapa e, no dia 12, quinta-feira, funcionários de McLaren e Haas foram isolados depois que alguns profissionais apresentaram sintomas do novo coronavírus.

Já com distanciamento social, a F1 encarou um fim de semana estranho em Melbourne (Foto: McLaren)

Na mesma quinta-feira, após a realização de teste, o funcionário da McLaren que apresentou sintomas de coronavírus testou positivo para a doença. A Fórmula 1 se viu diante de uma realidade sem precedentes. A equipe de Woking anunciou a decisão de não correr o GP da Austrália. Uma baixa impactante e deveras considerável.

Veio a manhã de sexta-feira, e depois de reunião com as outras nove equipes, seis decidiram seguir a McLaren e também se retiraram do GP. Red Bull, AlphaTauri e Racing Point foram votos vencidos. Minutos antes do que seria o horário programado para o primeiro treino livre na Austrália, a Fórmula 1 anunciou o cancelamento da corrida em razão da pandemia.

O quebra-cabeças de uma temporada incomum

Como seria o calendário dali em diante? Haveria temporada? Como recomeçar?

Diante de um inimigo invisível e sem o menor conhecimento de como lidar com o vírus, a Fórmula 1 voltou para a Europa sem saber como responder tais perguntas. Helmut Marko, consultor da Red Bull, chegou a dizer que a categoria só teria condições de correr no fim de junho, no Azerbaijão.

Em decisão conjunta tomada pelas equipes da Fórmula 1, Liberty Media e a FIA (Federação Internacional de Automobilismo), as escuderias ficaram com as portas fechadas, em regime de férias, por mais de dois meses, 63 dias, para ser mais exato, enquanto as fábricas de motor ficaram sem operar por 49 dias. Tudo para conter custos no momento em que a F1 tentava, de alguma forma, entender o cenário sem precedentes e alternativas para fazer o campeonato acontecer.

O que ficou claro, desde o começo, era que dificilmente haveria possibilidade de um deslocamento mais longo neste ano. A categoria, caracterizada por correr nas duas últimas décadas em quatro dos cinco continentes, teria de se desdobrar para fazer um calendário que tivesse cara de Mundial. Naquele momento, contudo, parecia impossível.

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Zandvoort tinha tudo pronto para voltar em 2020 à F1. Ficou para o ano que vem (Foto: Divulgação)

Desde então, a categoria se deparou com vários cancelamentos e adiamentos. O Vietnã, que tinha tudo pronto para receber a F1 pela primeira vez, adiou a corrida que aconteceria nas ruas de Hanóiinexplicavelmente, o anúncio do cancelamento só veio quando a temporada estava perto do seu desfecho. A Holanda, que desenvolveu uma grande reforma em Zandvoort para voltar a sediar uma etapa do Mundial, se viu sem alternativas e cancelou a corrida. Nos primeiros meses de 2020, caíram corridas como Mônaco, Azerbaijão, França e Singapura.

Enquanto a Fórmula 1 definia protocolos para se isolar do vírus em bolhas de isolamento e testes contínuos, o que o diretor-esportivo Ross Brawn definiu como biosfera, a categoria teve de lançar o calendário revisado em partes. Naquele período, várias alternativas foram levantadas por jornalistas e fãs: corridas em rodadas duplas, provas em pistas no sentido invertido e várias etapas num mesmo circuito, como Silverstone. Traçados como Hockenheim, Jerez, Istambul e até Ímola foram cogitados à época. A ideia era garantir um calendário entre 15 e 18 GPs. De novo, parecia impossível.

Hockenheim chegou a ser cogitado como alternativa para preencher o calendário (Foto: Scuderia Ferrari)

Era evidente, neste aspecto, que as corridas teriam de ser realizadas sem a presença do público. Tudo para conter o avanço do coronavírus.

As soluções que ajudaram a escrever a bela história da temporada 2020

E foi aí que a criatividade se mostrou presente logo de cara.

O GP da Áustria foi confirmado para 5 de julho, data que fez a Fórmula 1 ter seu início de temporada mais tardio da história. A segunda etapa do campeonato também aconteceria no Red Bull Ring, o GP da Estíria. Uma semana depois, foi marcada a disputa do tradicional GP da Hungria, em Hungaroring.

Nesta primeira leva do calendário, a F1 confirmou também uma rodada dupla em Silverstone, berço do Mundial. A primeira prova era o GP da Inglaterra, em 2 de agosto. E a novidade, uma semana depois, foi o nome da segunda prova consecutiva na antiga base aérea britânica, batizada como GP do Aniversário dos 70 Anos da Fórmula 1. A primeira parte do calendário foi completada com os GPs da Espanha — este, que habitualmente é em maio, sendo alocado para agosto —, e da Bélgica e da Itália, esses nas suas datas originalmente previstas, 30 de agosto e 6 de setembro, respectivamente. Oito GPs em nada menos que nove semanas. Uma jornada extremamente árdua para todos.

O Red Bull Ring recebeu duas corridas em finais de semana consecutivos. Foi a primeira rodada dupla da história da F1 (Foto: Mercedes)

Como forma de tornar a dinâmica das corridas algo bem distinto mesmo em circuitos idênticos, a F1 trabalhou, junto à Pirelli, com escolhas de pneus diferentes para as rodadas duplas no Red Bull Ring e em Silverstone. E de fato, os GPs da Áustria e da Estíria foram excelentes e muito diferentes entre si, com vitórias de Valtteri Bottas e Lewis Hamilton, respectivamente. As duas corridas da F1 na Inglaterra foram empolgantes e mexidas muito por conta dos pneus. Hamilton triunfou em Silverstone na corrida de casa com direito a um pneu furado na última volta. E Max Verstappen, com estratégia perfeita, triunfou no GP do aniversário da F1.

Nos últimos dias do sétimo mês, a Fórmula 1 tomou uma decisão já esperada e cancelou as corridas previstas para o continente americano. Caíram, definitivamente, os GPs do Canadá, Estados Unidos, México e Brasil. Foi a primeira vez desde 1972 que a F1 ficou sem correr em um circuito brasileiro.

O primeiro novo circuito, daqueles não programados para fazer parte do calendário original, foi definido pela Fórmula 1 também em julho. O Mundial incluiu o circuito italiano de Mugello, tradicional pelas suas corridas na MotoGP, como palco do novo GP da Toscana, uma semana depois do GP da Itália, sendo marcado para 13 de setembro. A Ferrari fez o seu GP 1.000 na Fórmula 1 logo em casa.

O traçado, localizado cerca de 30 km de Florença, é um circuito à moda antiga e sem as áreas de escape asfaltadas que predominam nas pistas originais do calendário. Em Mugello, há incontáveis caixas de brita, como era comum nos anos 1980 e 1990, e tudo isso trouxe um ar de ainda mais expectativa para a prova.

Mugello proporcionou à F1 a chance de uma bela corrida com o novo GP da Toscana (Foto: Racing Point)

E foi uma grande prova. Com direito a Max Verstappen e Pierre Gasly atolados na brita, um acidente inacreditável com vários carros envolvidos na relargada, outra batida, forte, mas sem consequências, de Lance Stroll na chamativa curva de alta velocidade Arrabbiata, vitória de Hamilton e pódio de Alex Albon. Mugello empolgou o fã da Fórmula 1.

O Liberty Media anunciou, pouco depois, outras quatro novas corridas no calendário revisado da Fórmula 1. O GP de Portugal voltou a receber o Mundial pela primeira vez desde 1996 e com um circuito muito aguardado: Portimão, no Algarve, que fez sua estreia no campeonato. Ímola, que há 14 anos não tinha uma prova da F1, retornava, mas não sob o tradicional nome de GP de San Marino, mas como GP da Emília-Romanha, região em que fica localizado o traçado, na Itália. A diferença nesta etapa foi a programação mais enxuta, de apenas dois dias de atividades de pista, sábado e domingo.

A Fórmula 1 também voltou à Alemanha, mas não para Hockenheim, como chegou a ser cogitado. O destino foi o não menos tradicional circuito de Nürburgring, que não integrava o calendário desde 2013. O traçado germânico foi palco de outro nome de corrida inédito na F1: o GP de Eifel. O quarto circuito incluído pela categoria também foi uma novidade que agradou em cheio fãs do esporte e pilotos. Depois de nove anos, o GP da Turquia, no circuito de Istambul Park e a sua famosa curva 8, voltou a fazer parte do campeonato.

No fim de agosto, a F1 finalmente completava a programação do seu calendário revisado, fechado em 17 GPs, com três etapas no Oriente Médio. A grande inovação do ano foi a alocação de uma segunda corrida em Sakhir, no Bahrein, mas com um traçado muito diferente: a versão do anel externo, apelidado por muitos como oval, com apenas 11 curvas e perspectiva de tempos de volta abaixo de 1min, como é habitual ver nas corridas realizadas na Indy. A F1 provocou uma grande curiosidade para os fãs e também pilotos. Alguns dos competidores previram uma classificação muito bagunçada por conta do tráfego e do vácuo.

De volta a Nürburgring, a Fórmula 1 entregou um GP de Eifel com muito frio e temperatura ambiente baixíssima, mas de embates muito quentes na pista e de grandes acontecimentos. Hamilton venceu e igualou o recorde de vitórias de Michael Schumacher, enquanto Daniel Ricciardo faturou seu primeiro pódio pela Renault.

A Fórmula 1 voltou a Nürburgring neste ano com o GP de Eifel (Foto: Getty Images/Red Bull Content Pool)

Com suas subidas e descidas íngremes, Portimão foi palco de outra corrida memorável. Uma rara corrida com público nas arquibancadas, o GP de Portugal, iniciado com garoa, chegou a ter Carlos Sainz como líder no asfalto escorregadio, uma incrível reação de Sergio Pérez, que foi tocado por Verstappen e caiu para último antes de terminar em sétimo, e Hamilton, que venceu pela 92ª vez na F1 e virou o maior vencedor da história no Mundial.

Dentre as pistas que foram novidade no calendário, Ímola foi a única que não chegou a proporcionar uma ótima corrida, embora tivesse sido marcada por algumas boas disputas. O triunfo, na base do timing correto para a troca de pneus — durante o safety-car virtual após o abandono de Esteban Ocon — e da melhor estratégia, ficou com Hamilton.

Outra novidade no calendário muito aguardada foi o retorno do GP da Turquia. A prova, marcada para o fim de semana entre 13 e 15 de novembro, marcou o regresso da F1 ao Istambul Park, em Kurtkoy. A pista, praticamente desativada para competições há muito tempo, era usada como lugar para estacionamento de carros usados. O longo tempo inativo fez com que os organizadores da prova recapeassem todo o asfalto com menos de um mês para a corrida.

A reforma foi criticada por Hamilton, que entendeu ter sido tudo um desperdício de dinheiro, afinal a chance de a Turquia voltar a receber a F1, de uma forma normal, é bastante reduzida. O fato é que o novo asfalto virou um sabão por conta da chuva que deu as caras do lado asiático do Estreito de Bósforo. Foi assim, diante do caos e com a pista em condições críticas, que Lance Stroll surpreendeu o mundo do esporte com uma atuação inacreditável para, na volta final, superar Verstappen e Pérez para conquistar a pole-position com pneus intermediários.

A corrida em Istambul foi liderada por Stroll por mais de 30 voltas. Mas o canadense perdeu performance depois do segundo pit-stop por conta de uma alegada avaria na asa dianteira. Pérez chegou a liderar, mas foi ultrapassado por Hamilton, que venceu e confirmou a conquista do seu sétimo título mundial de F1 ao melhor estilo. Depois de um espetacular embate nas curvas finais, Pérez venceu a batalha com Charles Leclerc e foi o segundo, enquanto Sebastian Vettel, pela primeira e única vez na temporada, completou o pódio. Outra corrida sensacional.

Anel externo de Sakhir foi uma atração à parte no fim da temporada (Foto: Racing Point)

A temporada dos circuitos alternativos usados pela F1 em 2020 terminou em grande estilo, de maneira sensacional. O GP de Sakhir, no anel externo do circuito do Bahrein, proporcionou aquela que foi, para muitos, a melhor corrida do ano. Muito pelas características da pista e muito pelas circunstâncias que envolveram a prova, como a ausência inesperada de Hamilton após ter testado positivo para Covid-19 e a sua substituição na Mercedes, a atuação soberba do prodígio britânico e a recuperação ainda mais incrível de Pérez, que havia caído para último depois do incidente na primeira curva entre Leclerc e Verstappen, a F1 se viu diante de momentos mágicos e escreveu outra bela página na história do campeonato com a vitória de ‘Checo’ Pérez, a primeira de um mexicano em mais de 50 anos.

A alegria do piloto da Racing Point pela conquista da sua primeira vitória na F1 depois de 190 GPs disputados em 10 temporadas contrastou com a enorme tristeza de um Russell que se viu perto do topo duas vezes na primeira chance que teve de guiar um carro competitivo. Outros fatos marcantes naquela corrida foram os pódios de Esteban Ocon, o seu primeiro na carreira, e de Stroll, além do retorno de um brasileiro ao grid, Pietro Fittipaldi, substituto de Romain Grosjean após o gravíssimo acidente sofrido pelo franco-suíço com a Haas no GP do Bahrein.

Diante de tantos problemas, de tantas dúvidas até mesmo se seria possível a realização de um campeonato neste ano, a Fórmula 1 fez milagre, foi criativa, acertou em cheio com aquilo que tinha em mãos e, em pouco tempo, conseguiu organizar um calendário responsável por produzir uma temporada inesquecível. Fica só o lamento pelo fato de que a maior parte das pistas que abrilhantaram a história deste 2020 na maior das categorias não deve mais voltar ao Mundial.

Seja como for no futuro, o que vimos neste ano foi lindo demais e valeu a pena. Valeu muito a pena.

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