Retrospectiva 2020: F1 dribla pandemia e entrega temporada de grandes histórias

A pandemia do novo coronavírus fez a Fórmula 1 se reinventar. Entre um calendário revisado, a bolha para evitar o contágio da Covid-19 e novos acordos, o Mundial entregou um campeonato excelente, de recordes, de corridas memoráveis, de heróis dentro e fora das pistas. No futuro, esse campeonato será lembrado com um sorriso

De longe, o 2020 que acaba daqui a poucos dias foi o ano mais estranho dos últimos tempos, marcado por um incômodo misto de tristeza, decepção, surpresa e também de alguma alegria. A pandemia forçou um confinamento doloroso e sem precedentes. Em dado momento, o mundo parou, atônito, diante de uma doença altamente contagiosa e letal. Era preciso recuar. Só que, de algum jeito, os caminhos foram se abrindo. A ciência, sempre ela, trouxe luz ao que estava acontecendo, com estudos sobre o comportamento do vírus e o que fazer para detê-lo até que uma solução fosse encontrada. Foi necessário se adaptar à realidade dura imposta pela Covid-19. Ninguém escapou disso. E assim como o planeta, a F1 também teve de aceitar os desafios e responder a eles. É verdade que demorou a compreender a gravidade, mas, depois, foi capaz de fazer um campeonato incrível, de histórias importantes e de uma mudança fundamental em seu perfil tão conservador.

A princípio, como já havia feito no passado em outras situações que pediam envolvimento e sensibilidade, a maior das categorias tentou ignorar as implicações do novo coronavírus, achando que poderia simplesmente seguir em frente. Só que ali, com todos devidamente instalados no paddock do Albert Park, em Melbourne, o teste positivo de um funcionário da McLaren colocou tudo em perspectiva. E não foi por falta de aviso. Um dia antes, Lewis Hamilton, a grande voz deste esporte, não hesitou em questionar a iniciativa de começar a temporada em meio a uma epidemia que ninguém conseguia entender direito. Os sinais estavam claros e a opinião pública reagiu. A F1 precisava tomar uma decisão.

Foi necessária uma madrugada inteira de discussões até que o inevitável anúncio fosse feito. Não havia como levar adiante o GP australiano, sequer a temporada, naquele momento. É claro que a desorientação pegou mal para o comando do campeonato, que ainda teve de lidar com uma série de adiamentos e cancelamentos, incluindo a tradicional etapa em Mônaco. Aliado a isso, por causa das restrições impostas em vários países, as fábricas também foram obrigadas a fechar. As férias do verão europeu foram antecipadas. E os prejuízos já preocupavam.

Leia também
+Retrospectiva 2020: Gigante dentro e fora das pistas, Hamilton vira o maior de todos na F1
+Retrospectiva 2020: Mercedes fica perto da perfeição. Mas ainda peca por manter Bottas
+Retrospectiva 2020: McLaren acerta e colhe frutos por confiar na dupla Sainz-Norris

A Mercedes liderou um projeto na F1 para a produção de respiradores na Inglaterra. (Foto: Mercedes)

No meio de tudo, um exemplo de consciência. As equipes se reuniram e passaram a trabalhar no desenvolvimento e fabricação de respiradores na Inglaterra. Na Itália, um dos países mais afetados, a Ferrari liderou um projeto semelhante. Foi o primeiro passo para uma transformação da categoria mais importante do esporte a motor. Meses depois, Hamilton conduziria mais uma mudança, talvez a maior em 70 anos de Mundial.

Foi nesse período também que o Liberty Media, a Federação Internacional de Automobilismo e os times começaram a pensar juntos e em duas frentes. A primeira medida foi garantir a sobrevivência do campeonato em si. Afinal, sem corridas, sem dinheiro. Diante de um cenário sombrio e incerto, houve uma rara unanimidade quanto aos limites de gastos, distribuição de premiação, taxas de inscrição e regulamentos. Foi decidido pelo adiamento das regras de 2021 para 2022, embora o teto orçamentário já comece a valer no ano que vem. Foram alterações essenciais para assegurar a vida financeira das equipes.

O segundo ponto de trabalho foi com relação ao calendário. Uma força-tarefa se juntou para tentar viabilizar a disputa das provas, ainda que com grande atraso – o Mundial começou mesmo só em julho. Porém, as restrições de viagem, o isolamento e o alto número de casos em diversos países acabaram por reduzir a temporada ainda mais. Países como Holanda, França e Azerbaijão não tiveram como realizar suas corridas, além do Principado. A F1 também não teve como evitar os cancelamentos das três corridas nas Américas, o que incluiu, claro, o Brasil. E precisou abrir mão do Japão, de Singapura e da China. A estreia do Vietnã ficou comprometida. Dessa forma, os chefes tiveram de usar a criatividade em um pequeno espaço para manobras. Aí que o Liberty e a FIA tiveram um novo acerto. Não só encontraram uma maneira de colocar os carros na pista, como também foram capazes de convencer promotores e países que era seguro receber a F1.

Interlagos não viu a F1 neste ano. A etapa brasileira foi cancelada devido à pandemia (Foto: Duda Bairros/Vicar)

De fato, seria impossível ter 22 corridas em cima da hora. Mas o comando da Fórmula 1 soube negociar e ir atrás dos lugares certos, elaborando um campeonato de 17 provas em cinco meses e pouco. Além disso, topou situações impensáveis como correr em sequência em uma mesma pista. Ou reativar um autódromo que virara um grande estacionamento. E foi assim que a temporada ganhou com duas provas no Red Bull Ring, em Silverstone e no Bahrein – embora aqui em traçados diferentes. Devido ao arrojo do Liberty, a F1 viu o grato retorno do clássico circuito de Nürburgring, da bela e escorregadia pista de Istambul e da histórica Ímola. Ainda, deu boas-vindas à selvagem Mugello e ao lindo autódromo do Algarve.

Quase como um prêmio pela ousadia, as novidades contaram histórias espetaculares, como a vitória de Sergio Pérez no anel externo de Sakhir, ou aquela primeira volta de tirar o fôlego no circuito português, ou ainda, as três largadas na Toscana, sem contar o triunfo de Hamilton na Turquia, em uma das maiores exibições do heptacampeão, que, inclusive, lhe garantiu o título. E a F1 mereceu mais. As velhas conhecidas também escreveram um capítulo a parte, como a agitada primeira etapa, na Áustria, a classificação debaixo de chuva do GP da Estíria, a vitória de Hamilton com apenas três pneus em Silverstone, a conquista de Max Verstappen no estratégico GP dos 70 Anos. E ainda teve Pierre Gasly, levando uma improvável AlphaTauri ao degrau mais alto do pódio, na mesma Monza em que Sebastian Vettel venceu com a Toro Rosso, em 2008.

Conheça o canal do Grande Prêmio no YouTube! Clique aqui.
Siga o Grande Prêmio no Twitter e no Instagram!

Realmente, não deu para reclamar. Foi intenso, é verdade. Afinal, a temporada condensada precisou lançar mão de sequências de até três corridas. Mas tudo isso só foi possível também por conta da bolha feita pela F1 para evitar o contágio. Todo mundo envolvido com o campeonato foi testado a cada semana, houve uma redução drástica no número de jornalistas e o paddock se viu vazio. A maioria das corridas não viu público algum. O sistema de proteção funcionou no geral, embora não tenha conseguido evitar a infecção. Os casos mais notórios foram de Sergio Pérez, Lance Stroll e Hamilton. Os três perderam corridas por conta da Covid-19. E a ausência deles também foi responsável por duas das mais populares histórias desse 2020.

F1; FÓRMULA 1; NICO HÜLKENBERG; RACING POINT; GP DE EIFEL; F1;
Hülkenberg substituiu Pérez e Stroll em 2020 (Foto: Racing Point)

Com a baixa do mexicano, a Racing Point teve de chamar às pressas Nico Hülkenberg, que estava fora do grid desde a dispensa pela Renault no ano passado. O alemão substituiu ‘Checo’ nas duas corridas inglesas. Na primeira, sequer largou, mas, na segunda, foi brilhante. Saiu em terceiro, andou bem e terminou em sétimo, apenas por causa de um troca de pneus extra. Semanas depois, voltou ao cockpit rosa no lugar de Stroll, que faltou ao GP de Eifel. Na pista germânica, Hülk saiu de 20º para oitavo. As performances chamaram a atenção, e Nico passou a ser cogitado no mercado, especialmente quando a Red Bull começou a cobrar mais de Alex Albon. No fim das contas, Hülkenberg não conseguiu a vaga, que ficou, curiosamente, com Pérez – e merecidamente, pois fez um campeonato excelente, com a quarta posição.

Outro que também deu espetáculo foi George Russell. O jovem inglês, piloto da Williams e membro do programa da Mercedes, foi escolhido por Toto Wolff para guiar o carro de Hamilton, em Sakhir, depois de Lewis testar positivo para a Covid, logo após a vitória no Bahrein. Russell não desperdiçou a chance e nem se intimidou com Valtteri Bottas. Quase fez a pole e poderia ter vencido a corrida em Salhir não fosse um erro da equipe. Sem dúvida, fez o nome. E o Mundial ainda teve um pequeno exemplo do que seria o campeonato sem Hamilton.

Ainda que tenha vivido como numa montanha-russa, o 2020 da Fórmula 1 apresentou uma única constante. Hamilton é o nome da temporada. O britânico se apresentou mais forte do nunca, anulou completamente o companheiro de Mercedes, único que tinha equipamento para oferecer alguma resistência, e proporcionou momentos sublimes ao volante do icônico W11 preto, com poles fantásticas, vitórias incríveis e atuações exuberantes, quase sem erros. Difícil apontar um ponto fraco no homem que agora é o maior vencedor da história da F1. E que, enfim, se coloca em igualdade de títulos com Michael Schumacher.

Lewis Hamilton usou camisa pedindo a prisão dos policiais que mataram a jovem negra Breonna Taylor (Foto: AFP)

Mas talvez tenha sido fora das pistas a maior conquista desse inglês de 35 anos. Cada vez mais consciente de seu papel no mundo e do poder de sua voz, o inglês foi às ruas de Londres protestar contra a violência policial e pelo fim do racismo sistêmico. Assumiu um posicionamento ainda mais crítico diante do esporte. A Mercedes o apoiou e trocou a clássica pintura prata pela cor preta, como uma mensagem ao mundo sobre a luta contra a discriminação racial. Lewis se ajoelhou em todas as corridas, cerrou o punho no pódio e se manifestou contra crimes raciais. A coragem do heptacampeão contagiou muitos de seus pares, que se juntaram a ele nas manifestações antes das provas.

E Hamilton foi além: forçou a F1 a discutir sobre diversidade e desigualdades. O Mundial lançou, então, a campanha ‘We race as one’, algo como ‘Nós corremos como um’, em tradução livre. É claro que ainda há um longo caminho a ser percorrido, mas o pontapé inicial foi dado.

Portanto, a F1 pode se orgulhar de seu 2020, sim, mas não pode jamais se esquecer de que deve muito a Hamilton. Afinal, tudo começou com ele.

Chamada Chefão GP Chamada Chefão GP 🏁 O GRANDE PRÊMIO agora está no Comunidades WhatsApp. Clique aqui para participar e receber as notícias da Fórmula 1 direto no seu celular! Acesse as versões em espanhol e português-PT do GRANDE PRÊMIO, além dos parceiros Nosso Palestra e Teleguiado.