Retrospectiva 2024: Fórmula E tem ‘brigaça’, mas vê rebelião por corridas de pelotão
A temporada 2024 da Fórmula E contou com uma das grandes brigas pelo título da história e novos campeões de Pilotos e Equipes. Mas também viu uma insatisfação nascer
A Fórmula E voltou ao segundo ano da terceira geração de carros para fortalecer as estruturas bem-sucedidas estabelecidas no ano passado. Com carros e pistas mais velozes, além de forte grid, a qualidade das provas nunca foi melhor e as brigas, nunca tão divertidas. Na prática, o que se viu foi algo parecido. Corridas que renderam e uma briga pelo título de alto nível e definida de maneira agônica, no último dia, com três postulantes ainda com chances. Mas também é verdade que a categoria começou a ter de lidar com certa rebelião relacionada a um estilo específico de provas.
O calendário sofreu dois golpes fortes, com as inesperadas perdas de Cidade do Cabo e Hyderabad, mas contou com a inclusão de Tóquio e Xangai, numa versão do traçado do Circuito Internacional utilizado pela F1, adaptado para as necessidades. Misano também oferecia oportunidade de corrida em pista rápida e fechada. Uma pena a perda de duas provas que renderam ótima provas em 2023, mas ambas as novidades mostraram algo. Em Tóquio, ventos fortes tornaram a corrida um desafio; Xangai ofereceu uma violenta prova de pelotão, de quem tanto se falou.
Mas é necessário começar pela briga do título. Afinal, foi uma trocação notável. Após o campeonato de 2023, a expectativa era de uma temporada altamente controlada pelas equipes de motor Jaguar e Porsche, uma vez que os trens de força estavam congelados. O que se viu foi grata surpresa. Sim, as equipes de fábrica de Jaguar e Porsche brigaram pelo título com mais vigor e chegaram ao fim dominando a tabela de pontos, mas as rivais arroxaram.
Nissan, a grande surpresa, DS Penske, McLaren e Maserati, sobretudo, em diferentes momentos do campeonato, incomodaram muito e levaram a melhor em diversas provas. As clientes de Jaguar e Porsche, Envision e Andretti, foram de campeãs mundiais de Pilotos e Equipes, respectivamente, a decepções profundas que jamais estiveram na briga.
A Porsche abriu o ano tratando da necessidade de melhorar o grande defeito que teve em 2023: ritmo de classificação. Logo de cara, mostrou que havia acertado e cravou a pole na Cidade do México, com Pascal Wehrlein, que também venceu. O campeão vigente Jake Dennis daria a única vitória do ano para a Andretti em Diriyah 1, enquanto Nick Cassidy colocou a Jaguar na conversa em Diriyah 2.
As três primeiras corridas do ano, entretanto, foram decepcionantes. Diferente de campeonatos anteriores, Diriyah nada rendeu de resposta ao costumeiramente maçante evento mexicano. Faltava chegar na ‘zona pack race’ do campeonato? De qualquer forma, Cassidy fora aos três pódios e liderava a brincadeira.
O campeonato mudou ao chegar em São Paulo, que reiterou o fato velocidade que transforma a Passarela do Samba do Anhembi em lar de uma pista acertada para a Fórmula E. Com uma corrida impressionante, Sam Bird deu à McLaren um inesperado triunfo ao superar o ex-companheiro de equipe Mitch Evans na última curva. Maximilian Günther, então, deu à Maserati a vitória do primeiro eP de Tóquio. Em Misano, antes de Wehrlein ganhar de novo, a primeira prova da rodada dupla ficou nas mãos de Oliver Rowland, de um retorno triunfal aos quadros da Nissan, após desclassificação para lá de contestável e António Félix da Costa. O português venceu com autoridade, mas teve o resultado sacado por conta da presença de uma mola do amortecedor do acelerador estar em desacordo com as regras. Segundo a própria FIA, sem alterar desempenho, mas, mesmo assim, rendendo bandeira preta. .
Sumido na metade do campeonato, Evans finalmente acordou e venceu em Mônaco, enquanto Cassidy e Da Costa, agora, sim, levariam a melhor em Berlim. António andava escutando que a vaga na Porsche para 2025 estava ameaçada, com direito até a Nico Müller, de bom ano na ABT Cupra, testando o carro na Espanha. E foi mais ou menos aí que disparou de andar bem. Levando em conta Berlim 2 como a primeira prova da sequência, venceria quatro das últimas sete provas. A briga pelo título de Pilotos já havia ficado longe, mas foi definitivamente demonstração de força. Além disso, colocava a Porsche no páreo.
Antes de Da Costa ganhar Xangai 2, Evans levou a melhor em Xangai 1. Em Portland, varrida do português. Faltava Londres. O campeonato chegava para a rodada dupla decisiva com Cassidy líder, dono de 167 pontos contra 155 do companheiro de equipe Evans e de Wehrlein. Os postulantes reais no duelo do caneco.
Antes de Londres, vale um raio-x mais atento ao que foi a atuação de Cassidy em Portland. O neozelandês cruzava a penúltima volta da prova 1 na cidade americana e colocava uma das mãos no troféu de campeão. Aí, errou sozinho, saiu da pista e terminou fora dos pontos. No domingo, voltou a não pontuar. Evans, que estava longe, entrou na briga e Wehrlein por ali permaneceu.
“Executei 25 voltas perfeitas e fiquei muito feliz com minha corrida. E, então, cometi um erro enorme”, admitiu Cassidy.
Em Londres, a Jaguar amargaria a chance perdia. Wehrlein, quase adormecido por boa parte da segunda metade do campeonato, desistiu de repetir a saga de refugo do ano anterior. Com atuação de gala, venceu a primeira prova da decisão e assumiu a liderança, uma vez que Cassidy largou no fundo do pelotão e fechou apenas em sétimo. Evans foi pole e chegou em segundo, o que o manteve bem próximo. Wehrlein iria para o domingo decisivo com sete pontos de frente para Cassidy e três para Evans.
Mas Nick deu a deixa da recuperação cedo no dia seguinte: anotou a pole e os três tentos que com ela vêm. Tinha o campeonato sob controle, mesmo com Evans em terceiro e Wehrlein, em quarto.
Depois de apenas seis voltas das 37 marcadas, os três postulantes ao título ocupavam as três primeiras posições, com Cassidy e Evans formando uma dobradinha momentânea da Jaguar. Só que a decisão estratégica para o dono da pole-position se provaria terrível. Cassidy se apressou para acionar o modo ataque nas duas vezes obrigatórias logo cedo. No segundo acionamento, caiu para trás de Evans e Wehrlein. Restava esperar que os dois fizessem o mesmo.
Mas não foi assim. Os dois foram abrindo, com Wehrlein pressionando, claramente mais rápido, enquanto Cassidy ficou para trás. A temporada terminaria para ele como uma síntese das etapas finais: ao sofrer pancada de António Félix da Costa, companheiro de Wehrlein, na Porsche, enquanto tentava ultrapassar Oliver Rowland. Com o safety-car que veio por este motivo, os líderes tiveram de pegar o modo ataque tardio e entregaram a vitória nas mãos de Rowland. Só que Evans errou o acionamento, precisou fazer volta mais longa uma terceira vez e deu a segunda posição e o caneco de vez nas mãos de Wehrlein. A Fórmula E passou a ter um novo campeão, nono em dez temporadas, e duas novas conquistadoras: a Porsche no Mundial de Pilotos e a Jaguar, no de Equipes. O primeiro caneco de ambas as montadoras que há muito apostaram na categoria.
Briga pelo título à parte o que mais chamou a atenção da última temporada dos carros Gen3 foram as reclamações sobre as corridas. Uma vez que as regras técnicas esteve congelada com relação a 2023, as alterações foram parcas. Mas uma das marcas que divertiu fãs no mundo inteiro no campeonato anterior começou a render chegas entre os pilotos. As corridas de pelotão, registradas sobretudo nos velozes circuitos permanentes que abundam o campeonato atualmente, começaram a dar ruído.
“Eles [Fórmula E] precisam mudar o pacote aerodinâmico do carro, porque há muito arrasto”, disse Jean-Éric Vergne após o eP de Berlim. “E, como os carros de trás têm muito menos arrasto, eles chegam [à curva] em uma velocidade muito maior e ainda podem regenerar mais energia. Precisamos de carros com menos arrasto”, pontuou.
“Do contrário, vamos continuar tendo esse tipo de corrida. E já vi o Gen3 Evo, a aerodinâmica é exatamente a mesma. Não vai mudar nada [nesse tipo de situação]. Eles realmente precisam encontrar uma solução. Não sei se consigo aguentar dois anos com esse tipo de corrida, não é uma coisa prazerosa. Ninguém gosta e é perigoso. Vemos muitas mãos fraturadas, não é algo bom”, alertou.
O único bicampeão da categoria foi além e tratou até da possibilidade de um abandono em massa da categoria. “Pode acontecer, sim [de pilotos se retirarem da categoria]”, destacou Vergne. “O bom é que há o Gen4 vindo aí. Mas, se o Gen4 for igual, vou parar com certeza”, finalizou.
Outro campeão, Stoffel Vandoorne, fez coro. “Eu odeio. Não é uma corrida de verdade. Não se trata de ser o mais rápido na pista. Trata-se de estar na posição certa, na hora certa. Você tem de tentar ficar longe de problemas. É um jogo estratégico. Ou você a odeia ou você a ama a Fórmula E. Já havia muitos fãs de corrida que não gostavam porque os motores não fazem barulho. As corridas de pelotão provavelmente também não favoreceram o esporte”, comentou.
“É claro que, com o carro, você pode fazer a diferença, porque se você for mais eficiente do que os outros, isso ajuda. Mas é um tipo de corrida muito bizarro. Você pode ir de último para primeiro, de primeiro para último, e mudar de posição 20 vezes durante a corrida. É muito difícil para as pessoas entenderem isso”, encerrou.
É uma questão com a qual a categoria tem de lidar daqui para frente, porque o descontentamento é real – ainda que nem todo mundo seja contra: António Félix da Costa, por exemplo, aprovou o formato. Sobretudo, porque, como disse Vergne, a situação aerodinâmica com que os carros operam não vai mudar tão pronto. Afinal, os Gen3 Evo, versão atualizada dos Gen3, estreiam nesta temporada vindoura e indicam mais dois anos com o mesmo esquema.
Por falar nele, o Gen3 Evo vem aí para servir de ponte por dois anos até a estreia do Gen4, uma geração inteiramente nova de bólidos da Fórmula E. Para 2025 e 2026, os carros terão aceleração de 0 a 96 km/h em 1s82 – 30% mais rapidamente que os carros da F1. O desempenho geral será, nos planos da categoria, 2% melhor que o Gen3. Trata-se de um desenho mais forte, mais robusto e com mais aerodinâmica, aproximando também as batalhas roda a roda da categoria – mas com a aerodinâmica, gerada através da parte tecnológica, semelhante. O Gen3 Evo tem ainda a atualização da tração integral e dos pneus Hankook iON, que terão entre 5 a 10% mais de aderência que os atuais e feitos em 35% de materiais reciclados e sustentáveis, projetando desempenho para os pilotos e minimizando impacto ambiental.
“A principal inovação é a tração nas quatro rodas, e isso faz uma grande diferença. O carro se torna bastante rápido e proporciona uma sensação melhor no volante. Você ganha muito tempo por volta, até dois segundos. E também é muito agradável em termos de puro prazer de pilotar. Esse é um avanço realmente decente. Será extremamente poderoso”, avaliou Vergne após testar o conjunto no último mês de junho, no circuito de Maiorca, na Espanha.
A partir da temporada 2026/27, a categoria iniciará a Era Gen4, que terá carros com tração nas quatro rodas, 600 kW de potência [o equivalente a 833 cavalos] na classificação, até 450 kW [611 cavalos] na corrida e incríveis 700 kW [951 cavalos] de recuperação, divididos em 50% entre os eixos dianteiro e traseiro, com um peso aproximado de 980 kg. Aí, será outro mundo.
Por enquanto, a Fórmula E tem de lidar com a realidade do agora. Continuar gerando boas corridas e negociar com o desconforto gerado com as pack races.
Há, por fim, a questão do Attack Charge, sonho de consumo com que a Fórmula E flerta há dois anos. Deixa claro, porém, que se trata de uma tecnologia de estimação para o futuro. Que, então, fosse anunciado assim desde o começo.
A Fórmula E retorna com atividades de pista somente entre os dias 4 e 7 de novembro, com os testes coletivos de pré-temporada na pista de Valência, na Espanha. A temporada 2024/25 começa aqui no Brasil, com o eP de São Paulo, marcado para o fim de semana do dia 7 de dezembro.
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