Testes promissores à parte, FE precisa abrir nova temporada com decisão humana: cancelar eP saudita

Quase sem espaços publicitários para distribuir e com uma bateria de testes extremamente bem-sucedidos de pré-temporada, a Fórmula E vive um momento excelente enquanto negócio automobilístico. A categoria, entretanto, se colocou no centro de uma crise internacional ao ver sua mais nova melhor amiga, a Arábia Saudita, envolvida em uma guerra criminosa com o Iêmen e no criminoso assassinato do jornalista e opositor Jamal Khashoggi

Após meses de testes particulares e trabalhos de desenvolvimento nas fábricas, a Fórmula E foi para a pista na semana passada, enfim, para os testes de pré-temporada. Durante três dias em Valência, as 11 equipes mandaram dois carros ao traçado e puderam conduzir experimentos e medir forças com outras rivais. Com a BMW mostrando enorme cartão de visitas e poucos problemas em comparação ao que uma bateria de testes com carros novos poderia apresentar, foi um começo bastante promissor. No meio da sessão, o anúncio de novos patrocínios e uma novidade: a FE está ficando sem espaços para se associar a novos parceiros. Mas uma questão, inesperada e absolutamente trágica, foi colocada entre o esporte e os fãs. Um assassinato institucional que joga a Fórmula E sob um tipo de holofote no qual jamais esteve. 

No último mês de meio, a categoria celebrou um acordo com a Arábia Saudita para a realização de um eP na cidade de Ad Diriyah, ao lado da capital Riad, para abrir a temporada 2018/19. Mas o acordo vai ainda mais longe: tem na prática dez anos de duração e dá aos sauditas o poder de vetar qualquer outra opção de prova que a FE queira correr no Oriente Médio. Embora os valores não sejam conhecidos, são certamente pujantes. Pudera, somente dois anos atrás a FE acertara um contrato para abrir três temporadas em Hong Kong. Agora fechar um acordo em cima desse e de dez anos?
 
Ademais, a Saudi Arabia Airlines, companhia aérea comandada também por um braço do regime monárquico do país, surgiu como parceira da Fórmula E. Tudo parte da Vision 2030, um plano desenvolvido pelo príncipe herdeiro e homem forte de fato da teocracia saudita, Mohammad bin Salman, com a intenção de reduzir a dependência que a Arábia Saudita tem em relação ao petróleo. Desenvolver um setor industrial como o da eletrificação dos veículos e outro como o turismo é uma ideia central. 
O acerto da FE com a Saudia foi selado em Ad Diriyah (Foto: FE)

Pensando nisso, por exemplo, o país liberou que mulheres pudesse dirigir – algo que era proibido até o último mês de junho. 

 
A escolha da Arábia Saudita como uma zona central de seu projeto internacional sempre foi polêmica. O GRANDE PRÊMIO fez um texto, ainda naquela semana, que destacou a institucionalização dos abusos de direitos humanos praticados no país. A opressão consentida com mulheres – que não podem sequer ter acesso à serviços públicos caso não estejam sob a tutela de um homem de primeira linhagem sanguínea ou marido -, homossexuais e pessoas com outras correntes religiosas são famosas. A religião oficial da Arábia Saudita é o wahabismo, uma corrente extrema do islamismo, que o país acredita em ter o dever de internacionalizar. É o princípio de várias organizações jihadistas do Oriente Médio – o Estado Islâmico, por exemplo.
 
Isso tudo foi exposto no texto de outrora, mas de lá para cá mais coisas aconteceram. Na guerra operada no Iêmen – uma aniquilação, na verdade –, uma coalizão internacional com a liderança da Arábia Saudita, foram mais de 10.000 pessoas mortas desde 2015, causando a maior crise de cólera já registrada no mundo. A fome se alastrou pelo país vizinho, onde as forças sauditas sequer permitem a entrada de suprimentos entregues pela Organização das Nações Unidas. Segundo a ONU, é a grande crise humanitária do mundo.
 
Em agosto passado, uma bomba guiada com laser de precisão lançada pelos sauditas contra um ônibus na província de Saada, no Iêmen, matou 51 pessoas: 40 eram crianças. De acordo com a coalização saudita, tratou-se de uma "operação militar legítima".
Mais um traço famoso da família real da Arábia Saudita é o cerceamento da imprensa. Há o aparelhamento e controle midiático quase que total, com presença de censores nas redações pelo país e pouquíssimo espaço para negociar 'publicidade negativa' para os monarcas. Como o regime já dura mais de 80 anos, boa parte da imprensa nacional está de certa forma controlada. Mas quem escapa do domo governamental, paga. 
 
Foi o caso de Saleh al-Shehi, por exemplo. Colunista do jornal 'Al-Watan' é crítico do regime e foi preso nos primeiros dias de janeiro e condenado, um mês depois, a cinco anos de prisão sob a acusação de "insultar a corte real". Além dos anos em regime fechado, Al-Shehi ainda vai enfrentar uma proibição de viajar para fora do país por cinco anos após ser solto. A especialização de Al-Shehi é divulgar casos de corrupção no governo monarca. É um caso entre alguns outros de jornalistas condenados por fazerem seu trabalho.
Jamal Khashoggi foi brutalmente assassinado (Foto: Reprodução/Twitter)

Outro jornalista, Jamal Khashoggi, deixou a Arábia Saudita de vez. Após enfrentar alguns casos de censura, o jornal inglês 'The Independent' publicou em 2016 que Khashoggi fora banido de publicar colunas ou aparecer na televisão do país. Khashoggi, então, foi para os Estados Unidos e se tornou colunista do jornal 'The Washington Post' como especialista em Mundo Árabe. Durante mais de um ano, Khashoggi escreveu sobre diferentes aspectos políticos e sociais da Arábia Saudita e do Oriente Médio e arquitetou o lançamento de um grupo pró-democracia na região que seria chamado DAWN (Democracia Agora para o Mundo Árabe, na sigla em inglês). O príncipe herdeiro e o rei sauditas, a quem o jornalista foi próximo durante anos, estiveram entre os seus mais frequentes alvos.

 
Com ia se casar com uma mulher turca, o jornalista foi até o consulado saudita em Istambul para pegar alguns documentos necessários para o casório. Entrou lá na tarde do último dia 2 de outubro e saiu morto, escondido e em pedaços, literalmente. A Turquia tomou a frente nas investigações e, com base em gravações de áudio e vídeo, logo pintou o quadro do que aconteceu com Khashoggi no consulado: o jornalista foi torturado e morto. O corpo, esquartejado.
 
A Arábia Saudita disse inicialmente que Khashoggi havia morrido durante uma discussão e, por fim, admitiu que oficiais do país assassinaram Khashoggi quando deveriam apenas interrogá-lo – um acidente, pois. Mas o presidente turco Recep Erdogan – outro que não é nenhum modelo à liberdade de imprensa e viu neste caso a oportunidade de se redimir frente aos olhos internacionais – discordou.
 
De acordo com Erdogan, o investigação turca indica que o assassinato foi planejado, três grupos de cidadãos sauditas chegaram a Istambul em voos separados nos dias e horas que antecederam o assassinato. O sistema de câmeras de segurança do consulado saudita foi ainda desativado e o disco rígido, retirado. O corpo ainda não foi encontrado.
 
Mas não para apenas em Khashoggi. Após a notícia do assassinato do jornalista, outros dissidentes sauditas vieram à público para comunicar que os consulados e embaixadas das praças onde vivem entraram em contato tentando levá-los para as ilhas sauditas em outros países. De acordo com matéria do portal 'Yahoo', Omam Abdulaziz, comediante que ficou famoso por satirizar Mohammed bin Salman em um programa na internet e hoje vive no Canadá, afirmou que oficiais sauditas insistiram neste ano para que ele fosse ao consulado local pegar um novo passaporte. O mesmo para Abdullah Alaoudh, hoje professor na universidade americana de Georgetown, mas que tem o pai, o clérigo Salman al-Awda, preso na Arábia Saudita. Oficiais do país ofereceram um passe temporário para que Alaoudh voltasse ao berço para completar o processo para a retirada de um novo passaporte. "Eu sabia que era uma ameaça", ele falou.
Quinta temporada da FE terá nova geração de carros e abertura em Riad (Foto: Divulgação/FE)

Dizer que correr na Arábia Saudita em 2018 seria um erro nem começa a classificar precisamente do que se trata a situação. 

 
"Em referência ao acidente, obviamente não temos comentários a fazer. Neste momento, não temos planos de mudar o calendário da Fórmula E nesta temporada. Mas, claro, estamos monitorando a situação", falou o diretor-geral Alejandro Agag à agência de notícias AP. Um porta-voz da categoria completou: "o calendário segue da forma como está, e planejamos correr na Arábia Saudita. Não temos mais comentários a fazer."
 
A busca da Fórmula E é uma decisão pessoal de Mohammad bin Salman, o príncipe herdeiro que hoje dá as cartas no país e quem toma decisões sobre guerras e assassinatos planejados pelo Estado. A Arábia Saudita se armou para a FE, abriu as portas para imprensa e turistas conseguirem vistos de entrada no país, tudo num esforço de se abrir para o mundo. Mas quando as decisões autoritárias se sobrepõem ao desejo de evolução, então as grandes organizações precisam colocar o pé no freio.
 
Não se trata de um lugar apenas em que há a relativização de direitos básicos e estado democrático de direito, isso há por todo o mundo. É outra nível: um país posto no bolso por uma família que se aproxima de um século no poder e que busca perfumes mais fortes para atrair aqueles que farão uso de suas salas com enormes TVs e seus quartos com banheiras de hidromassagem enquanto a cozinha segue inóspita, espurca e servindo carne humana em pratos de cristal e talheres de ouro.
 
A FE está de olho no Crown Jewel, um evento do WWE marcado para Riad em novembro. Provavelmente depois disso vai definir o que fazer.
 
Há o que pode ser definido hoje – e é simples: manter a etapa na Arábia Saudita é imoral. 
O acordo entre FE e Heineken (Foto: FE)
Lotação de patrocínios
 
Quando, na semana passada, a Fórmula E anunciou o acordo de patrocínio com a cervejaria holandesa Heineken, Alejandro Agag até corou. Prosa, não se fez de rogado ao afirmar que é provável que a FE não tenha mais espaço para novos patrocinadores quando a temporada começar – segundo ele, novos acordos estão por ser anunciados. 
 
Para uma categoria de cinco anos de idade, isso é ótimo. A vida e o sucesso da Fórmula E, ao menos comercialmente, estão garantidos por bastante tempo. Apenas um erro grotesco na condução esportivo poderia jogar a categoria que hoje mais cresce no mundo para as sombras. O novo modo das corridas para a temporada 2018/19 é um mistério sobre como vai funcionar junto ao público e, pelo menos por enquanto, resta esperar para ver. 
 
O que essas companhias tem a dizer sobre estarem ligadas à Arábia Saudita? TAG Heuer, DHL, Allianz, Bosch, Hugo Boss e Enel, todas parceiras oficiais da FE, como a Saudia, têm negócios na Arábia Saudita. Seriam capazes de dar uma resposta de pulso? Difícil de acreditar.
 
Mas a lotação de patrocínios é legal. Pequeno perto de outras coisas, mas importante.
António Félix da Costa (Foto: BMW Motorsport)
Já no traçado…
 
Na pista, a BMW deu seu recado: vai chegar como uma rival ferrenha na disputa pelo título. Liderou os três dias de testes, um com o novato Alexander Sims e dois com António Félix da Costa. É difícil precisar o que esses desempenhos querem dizer na comparação com outras equipes fortes, especialmente porque ninguém sabe quais foram os programas. DS Techeetah e Nissan também mostraram força, embora a equipe franco-japonesa ainda não saiba sequer quem será piloto não chamado Sébastien Buemi.
 
Lucas Di Grassi e Felipe Massa ficaram na primeira página em termos de resultados, sempre cercando a metade do pelotão. Numa Venturi que trabalha para escalar, é um começo bem satisfatório – Massa ficou próximo, mas à frente de Edoardo Mortara, que faz seu segundo ano no time. Na Audi, um mistério. Di Grassi teve resultados sólidos e, como tem sido uma potência desde o começo é um palpite seguro que os alemães não vão perder o caminho agora. De motores da Audi, a Virgin também teve um rendimento suspeito, com Sam Bird vivendo quase nenhum momento de brilhareco.
 
Nelsinho Piquet foi bem mais lento que o companheiro Mitch Evans, mas andou muito mais. A Jaguar deu ao brasileiro e primeiro campeão da categoria a missão de tirar quilometragem do carro. Piquet foi o único piloto a superar 40 voltas anotadas em cinco dos seis turnos de teste. 
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