Com a vitória no GP da Itália, Charles Leclerc chega definitivamente ao posto de estrela da Ferrari e da F1 - a questão, agora, é a intensidade que seu brilho pode alcançar

“Veja, talento vem de qualquer lugar. Todo mundo é talentoso, todo mundo nessa porra de bar é talentoso em uma coisa ou outra. Mas ter algo para falar e um jeito de dizer isso que faça com que as pessoas te escutem, isso é completamente diferente.”

A citação que abre esta análise é, na realidade, parte de um dos diálogos do filme ‘Nasce uma Estrela’, estrelado por Lady Gaga e Bradley Cooper e refilmagem da clássica história na qual um músico de sucesso alça uma cantora ao estrelato. Na fala, Jack – o personagem de Cooper – tenta convencer Ally – Gaga – que ela tem talento, e que precisa ir atrás desse talento e descobrir se tem potencial de alcançar o sucesso. “Se tem uma razão pela qual devemos estar aqui, é para dizer algo que as pessoas querem ouvir”, diz o cantor. 

Isso tudo é ficção, é verdade. Mas a ficção pode ser, também, uma janela para entender o nosso mundo. Estamos vendo nascer uma estrela. Não, não estou falando de Ally, Lady Gaga, nem nada disso.

O papo aqui é Charles Leclerc.

O conto do talento bruto lapidado para o estrelato pode acontecer na música e também no automobilismo

Já se sabia que o monegasco tinha talento bruto desde que ele venceu os títulos da GP3 e da Fórmula 2. Era claro o potencial no ano passado, nos primeiros pontos na F1 andando de Sauber com motor Ferrari defasado. A velocidade havia se transformado em realidade este ano, quando o jovem piloto estreou na Ferrari, ao lado de um tetracampeão, sem se abater, faturando poles e lutando pela vitória, quando possível. 

Só que como diz Jackson Maine, talento por talento não quer dizer muita coisa. Quantos pilotos são promissores nas categorias de base do automobilismo mundial? Muitos desses reúnem arrojo, consistência e habilidade – e a maioria naufraga pelo caminho. Sucumbem às suas falhas, à falta de oportunidade, de dinheiro, de confiança. Tenho certeza que, neste exato momento, alguns deles podem estar lendo este texto. Devem ter pensado algo na linha do “poderia ser eu naquele carro”.

Com a vitória no GP da Itália neste domingo (8), Leclerc mostrou que tem “algo a dizer”. Se ele não é um cantor que envolve o público com suas letras, ele – ainda que com erros – conseguiu utilizar as vantagens de sua Ferrari em Monza para subjugar uma quase imbatível Mercedes. Jogou duro, sim, contra Lewis Hamilton – mas, mais importante do que isso, não sentiu a pressão da luta contra um pentacampeão.

O frenesi dos tifosi com o pódio de Leclerc

Enquanto isso, quem sentiu a pressão foi o companheiro de Leclerc, Sebastian Vettel. Largando na quarta posição (muito também por causa de toda pataquada no final da classificação), o alemão errou, rodou, retornou para a pista no momento errado, quase causou um acidente sério com a Racing Point de Lance Stroll, levou a mais dura punição da F1 (um stop and go) e terminou a prova em 13º. Muito pouco para quem, no começo do ano, era colocado como um dos favoritos ao título.

Tudo isso, somada à sua juventude e cara de bom moço, além de um jejum de nove ano da Ferrari em terras italianas, causaram um verdadeiro frenesi na hora do pódio. A massa tifosi fez uma festa como poucas vezes aconteceu na maior categoria do automobilismo mundial. 

Charles descobriu uma massa enorme dispostas à escutá-lo. E sorriu.

Curioso é que o piloto do carro #16 pode dizer que, guardadas as devidas proporções, tem o seu “Jack Maine”, o mentor que viu o seu talento e o ajudou no caminho a estrelato. Refiro-me a Sergio Marchionne. Foi ex-presidente da Ferrari e da Fiat Chrysler que queria o jovem monegasco pilotando um dos bólidos da equipe. 

Marchionne morreu em julho de 2018, vítima das complicações de um câncer de pulmão. Ainda que houvesse uma corrente contrária, a vontade dele foi cumprida mesmo após a morte.

Leclerc e Louis C. Camilleri (atual CEO da Ferrari) comemoram a vitória com o resto do time

Esse não é o fim do nosso filme, é claro. Basta lembrar do próprio exemplo de ‘Nasce uma Estrela’. Ally deixou-se levar pela fama, pelo que diziam que ela deveria fazer – e não fazer ecoar aquela voz que, em um primeiro momento, a fizesse ser ouvida. A fama veio, os prêmios vieram, mas foi um caminho mais tortuoso do que o talento dela indicava. 

Vale dizer que, antes, os italianos tentaram importar essa estrela já pronta. Um deles foi Fernando Alonso, o mesmo responsável pela vitória anterior da Ferrari em Monza, em 2010. O espanhol já era, claro, uma realidade, bicampeão mundial, mas estava em seu primeiro ano no time italiano e, com aquela conquista, se credenciou à disputa pelo título. O sonho naufragou na última prova da temporada, preso atrás da Renault de Vitaly Petrov. 

O espanhol ficaria na Ferrari até o final de 2014, batendo na trave na disputa pelo título em 2012 e 2013.

Vettel foi outro que chegou no time italiano já badalado, tetracampeão. Uma estrela formada, com muito talento, mas que nunca venceu em Monza pela equipe – e que, no saldo, acumula mais críticas do que elogios entre os tifosi. 

Bom, vamos parar de falar do passado. Neste domingo, dia 8 de setembro de 2019, definitivamente nasceu uma estrela. O quanto essa estrela irá brilhar depende dela mesma, do desempenho da Ferrari (que não deve ter um resto de ano fácil), de um pouco da sorte e de continuar dizendo, com o pé direito e com as duas mãos, aquilo que os fãs do automobilismo querem ouvir.

A atenção ele já tem. 

(Ainda não assistiu ao filme ‘Nasce uma Estrela’? Fica, então, a dica).

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