A Odisseia de André Suguita: a lição

“Para mim, no sentido prático, foi quase que um conto de fadas. Não poderia ter sido melhor do que foi. Não deveria ter sido melhor do que foi. Também não mereceria nada mais do que foi”

“A corrida dura duas semanas, a lição dura para sempre”
Rafal Sonik

*em depoimento a JULIANA TESSER
arte de
RODRIGO BERTON

PARTE 1: O sonho
PARTE 2: A realidade
PARTE 3: A LIÇÃO

 
Eu aprendi algumas coisas. Uma é que as coisas nunca estão tão ruins que não possam ficar piores. Essa, sem dúvida, foi a maior lição que eu tirei. E outra que assim, se está ruim para você, também está ruim para os outros. Se os outros também estão lá, se esforçando, você tem obrigação de tentar também. E você acaba se identificando com o seu pelotão. Tinha um piloto de 50 e tantos e anos que estava correndo naquela categoria ‘Malles Moto’, em que o cara tem que fazer a manutenção da própria moto toda noite. Esse cara estava lá correndo e estava sofrendo muito mais do que eu. Ele estava lá também porque tinha um objetivo, que era terminar aquele negócio. Todos os pilotos que terminam, isso é um negócio que eu passei a enxergar, eles são vitoriosos.

Eu conheci vários dos caras do pelotão de trás — o pelotão da frente a gente tinha pouco contato — e todos eles enfrentaram desafios muito grandes, sejam mecânicos, físicos, técnicos… Tinha cara que dormia uma ou duas horas por noite, cara que ficava sem comer… A pessoa que conclui o Dakar, ela tem o seu valor, digamos assim. Independente de como ela concluiu. Eu passei a admirar não só os pilotos de ponta, mas também os pilotos lá do fundo. Essa é uma lição que para mim foi bem aprendida.

A gente que acompanha esporte tem o mau hábito de valorizar só os campeões, os caras que chegam lá. Agora, cada um tem um desafio.
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Talvez para o campeão ou para um piloto que chega em uma quinta colocação, aquela quinta colocação foi muito mais fácil de ser obtida do que o piloto que chegou em penúltimo. Tinha uma menina nos quadriciclos, por exemplo, a Paula, ela tem 1,50 m de altura, ela pesa 48 kg e estava em um quadriciclo igual ao meu. Ela chegava todos os dias em último lugar. Ela dormia, em média, uma ou duas horas por noite, e ela estava lá. Quando eu achava que eu estava ferrado, eu pensava nela. ‘Não é possível. Se ela está continuando, eu tenho obrigação de continuar. A condição física dela é muito pior do que a minha’. Essas coisas que acontecem no rali são muito loucas. Cada um tem o seu rali. É um rali muito individual. Às vezes, o cara que chega em último, como foi o caso dessa menina, ela tem muito mais valor do que o cara que chegou, talvez no meu caso, numa décima posição ou coisa parecida com isso. Os desafios são diferentes. São muito distintos.

Foi uma história muito bacana que eu vou guardar para o resto da minha vida. É uma história que foi feita com amigos, uma história que foi feita com muito suor. A gente sofreu demais, a gente teve muito problema, a gente estava tentando se superar a cada dia, não no sentido de resultado, mas no sentido de continuar na prova, e eu não teria conseguido realmente, e falo isso de coração, não teria conseguido sem esses meus amigos que estavam lá comigo. Esses caras estavam me empurrando para frente. Tinha hora em que eu pensava em fraquejar e eu olhava para eles.Os caras estavam há três, quatro dias sem dormir, estavam muito pior do que eu e estavam lá trabalhando para mim, para me empurrar, para fazer eu largar no dia seguinte. Isso tem um valor tremendo para o piloto amador. Isso vale mais do que a minha vontade. A minha vontade era secundária.

É uma história que eu vou guardar com muito carinho para o resto da minha vida, porque talvez se eu fosse participar de novo, numa estrutura melhor etc. e tal, ela não teria tanto valor para mim como teve essa primeira, em que a gente foi sem saber o que a gente estava fazendo. Foi uma aventura, de verdade. Foi uma aventura no sentido da palavra. A gente ousou demais para o que a gente era, eu acho. A gente se meteu a fazer um negócio que a gente não tinha dimensão do que era e no meio do caminho a gente ganhou força. A gente tomou um susto, a gente ficou um pouco assombrado com o tamanho da dificuldade do negócio, mas no meio do caminho a gente começou a vencer este desafio e começou a acreditar de verdade, e acabou dando certo. Para mim, no sentido prático, foi quase que um conto de fadas. Não poderia ter sido melhor do que foi. Não deveria ter sido melhor do que foi. Também não mereceria nada mais do que foi. Esse décimo lugar para mim conta como um primeiro. Foi muito legal, foi muito legal mesmo.

Eu não esperava que a gente fosse se superar tanto. A lembrança é essa. É o que a gente fala, para quem vive de rali, quanto pior melhor. Então as melhores lembranças são as dos piores momentos. Essa é a verdade. Nos piores momentos que a gente teve, nos momentos que a gente achou que não ia dar, que a gente ia abandonar, que eu não aguentava mais por conta da hipotermia, e que eu cheguei, para mim foram esses os melhores momentos. Se eu tivesse que colocar um momento só, acho que foi o dia que eu cheguei da etapa maratona, no segundo dia da maratona depois da hipotermia, eu cheguei no box e vi o meu mecânico, que é o Augusto, e o Avê, que era quem estava fazendo toda a parte logística para mim, puta, a gente se abraçou e comemorou como se a gente tivesse ganho o rali naquele dia. Foi um momento muito bacana. A partir daquele momento eu comecei a sentir que ia dar. Que a gente ia conseguir terminar e que eu tinha obrigação com esses caras de dar o meu melhor, de chegar até o fim. Esse momento foi o momento que mais me marcou.

André Suguita viveu uma aventura inesquecível no Dakar (Foto: Vinícius Branca)

O Dakar é uma prova extremamente organizada. É um negócio muito, muito, muito profissional. Uma coisa que me surpreendeu também positivamente é o quão bacana é a receptividade do rali nos países onde o Dakar é realizado. Na chegada do Dakar, para o público não importa se você chegou em primeiro ou em último. Ninguém te pergunta em qual posição você chegou. O fato de você ter chegado… A gente via placa em que escreviam: ‘Heróis’. De lá eles têm a dimensão, talvez mais do que eu como piloto quando me inscrevi tinha, do que é esse negócio. Esses caras te recebem como se você fosse um herói. Na largada, que foi um outro momento supermarcante para mim, tinham 600 mil pessoas na rua. Uma loucura! Tinha dia que a gente largava às 4h30 da manhã, o carinha tava com sua cadeirinha de praia no acostamento com o filhinho de dois anos de idade para ter dar um aceno, para te dar um grito de apoio. Isso é um negócio que eu nunca pensei que ia acontecer na minha vida.

Você desce de um quadriciclo, você não consegue andar 15 metros até o banheiro, porque você tem que dar autógrafo para um monte de criança, precisa tirar foto com um monte de gente. Eu, no meio do nada ali no Chile, as pessoas me chamavam pelo nome. ‘O Suguita, o Suguita, o brasileiro!’. Como assim?! Você não tem dimensão disso quando você vai para lá. É uma loucura, uma loucura. Os caras realmente são aficionados pelo off-road, eles sabem, eles entendem muito disso, muito, muito, muito, muito, isso me impressionou demais. O Dakar é um negócio de uma dimensão muito maior do que eu inclusive imaginava.

Como fã do Dakar, acho que sou muito menos fã do que esse pessoal que tá lá. Eu nunca faria o que eles fazem. De ficar lá às 6h da manhã, com 4°C, para dar um tchauzinho para um piloto. Isso é muito bacana. Eu vou levar muitas coisas, muitas histórias, muitas memórias muito bacanas dessas experiências fora da prova. A prova em si é um pedacinho do Dakar. O Dakar tem uma dimensão universal muito maior. Por isso que ele é o que é. E agora eu começo a entender porque ele é tão difícil. Ele é tão difícil porque precisa ser. Para você ter esse tipo de feedback, de resposta do público… Se fosse fácil, todo mundo faria. Se fosse fácil, não teria a mesma graça. Acho que só é o que é porque realmente tem que ser desse jeito. Porque é muito difícil e aí a recompensa é essa, é essa resposta que você tem das pessoas. Eu sou um Zé Ninguém, eu fui para lá para me divertir. Eu fui para lá, literamente, de férias. E eu saí de lá com as pessoas sabendo quem eu era, com pessoas que não me conheciam me oferecendo água, me oferecendo bolacha. Eu estava em um posto de gasolina lá no Chile e uma criança que estava lá, porra, a gente claramente via que ela não tinha uma condição, mas ela foi e me comprou uma coca-cola. Estava me oferecendo coca-cola. Eu encostei uma hora no acostamento e as crianças estavam tirando as coisas delas para me dar, um me deu boné, o outro me deu um cachecol. Essa casa que eu parei na Bolívia, me deram gorro, me deram cachecol, me deram luva. Assim, pessoas que eu nunca tinha visto na minha vida. Todas elas diziam: ‘Você precisa continuar. Você precisa terminar. Você está no Dakar!’.

Você realmente é encarado como herói. E eu me indagava o porquê daquilo. Porque tanto. Porque as pessoas valorizam tanto. A experiência de ter terminado foi uma lição para mim, porque eu comecei a entender. Aquelas pessoas sabem o que a gente passa, elas sabem o valor, elas aplaudem às vezes até mais um piloto que está chegando lá atrás do que um piloto de ponta. E é um negócio impressionante o apoio que você tem. Tinha dia que eu chegava quase que nas últimas posições e os caras me aplaudiam loucamente na beira da estrada. Esses caras têm um nível de, talvez por eles saberem como funciona, do grau de dificuldade, eles veem o inferno que a gente passa, os lugares que a gente passa, então é muito bacana. Os caras te enxergam, literalmente, como herói. E na chegada que eu fui entender.

Eu não me considero nunca como um herói, mas se eu tiver um dia como espectador, eu vou aplaudir o último colocado. Eu vou aplaudir todos eles. Porque não é fácil para ninguém. O carinha que passou pelo Dakar e terminou, certamente passou pelo inferno e conseguiu chegar lá. Então, no mínimo, ele merece um aplauso. Eu comecei a entender porque as pessoas estavam no meio da estrada aplaudindo. Essa é uma lição que eu levei também. Não é algo que eu faria antes de ter participado, certamente é algo que eu vou fazer depois. Se um dia eu estiver assistindo uma chegada do Dakar, eu vou fazer questão de aplaudir do primeiro até o último, porque cada um ali passou pelo seu próprio Dakar e, certamente, não foi fácil.

Eu aconselho como experiência de vida. Para mim, não teve preço. A gente pode comprar muitas coisas na vida, a gente pode fazer uma viagem bacana, pode comprar um bem material… Felizmente, o meu trabalho me dá condições de conseguir fazer várias coisas dessas. Me deu muito prazer eu comprar uma casa, comprar um carro bacana e tudo mais, mas são poucas as coisas que te dão tanta satisfação como enfrentar seus maiores medos e desafios. Eu tinha medo do rali, eu passei a ter ainda mais medo dele depois que eu participei, e, para mim, era um sonho de criança. O sonho de uma criança de seus dez, 12 anos. E concretizar isso foi muito bacana.

Se você tem isso como um sonho, como eu tinha, se você tem isso como uma meta, se você gosta de se desafiar, se você tem vontade de participar de uma aventura… O slogan deles é ‘Odisseia’ e é uma odisseia. É, de fato, uma odisseia. Aquilo não é um slogan, aquilo é verdade. Vale a pena, vale cada segundo. Eu não me arrependo em hipótese alguma.

André Suguita ralou, mas gostou da experiência que viveu no Dakar (Foto: Vinícius Branca)

Se eu indicaria para alguém? Indicaria, agora eu não necessariamente faria de novo. Tem uma grande diferença entre você indicar para alguém fazer e você repetir. Eu acho que eu tive a minha cota, a experiência foi super, superválida. Eu estou cansado, mas por dentro eu estou super feliz e contente — e não teria como estar de outra forma —, como todos os meus amigos que participaram também estavam extasiados. A gente comemorou muito e tudo mais, mas acho que o meu maior erro foi na preparação. Se eu tivesse que fazer tudo de novo, eu teria, certamente, me preparado muito melhor do que eu me preparei. Não estou dizendo que eu teria me preparado melhor para ter um resultado melhor não. Mesmo se eu tivesse me preparado, meu resultado possivelmente seria igual ou pior do que este. O resultado para mim foi um enorme de um bônus, mas eu acho que faltou realmente um pouco mais de curiosidade minha, talvez por um pouco de prepotência, eu achei que pelo fato de eu já ter participado seis vezes do Rali dos Sertões, eu já estava suficientemente preparado, e eu errei muito. Foi um erro de avaliação tremendo. Mas valeu.

Recomendo? Recomendo, mas recomendo para quem realmente gosta de off-road, para quem realmente gosta de rali, porque isso não é para qualquer um, não. Se é um cara que tá tipo: ‘Ah, eu tava pensando em ir lá porque eu achei legal essa história que você contou’, cara, não faz isso. Eu fiz isso depois de dez anos me preparando para isso. E eu só terminei por causa disso. Eu parei para pensar esses dias e cada coisinha que eu aprendi nesses dez anos de rali, eu usei. Cada coisinha! Do conhecimento básico de mecânica que eu tinha, de saber trocar um pneu quando ele furou, porque é muito fácil você se desesperar. A situação fica muito ruim muito rápido lá. Você está em uma situação extrema. Seu quadriciclo quebra, obviamente ele não vai quebrar na sombra, do lado de uma geladeira. Eu quebrei no meio da poeira, com 50°C na cabeça. E vestindo aqueles 15 kg de equipamento sem ter o conhecimento de mecânica adequado. E em nenhum momento eu me desesperei.

Se eu tenho algum mérito nesse negócio, foi isso. Do ponto de vista psicológico, eu estava super bem preparado. Eu fiz o que eu podia e, se não desse certo, eu também não ia me arrepender. Acho que você só consegue fazer isso se você tem um pouco de experiência nesse negócio. Rali é isso. Rali dá muito errado. Você pilotar bem, eu diria que é um terço do que você precisa para terminar um rali. Um Dakar, pelo menos. Você tem que saber pilotar, saber cuidar do seu equipamento, saber fazer uma coisa básica de mecânica e você tem que ter uma boa cabeça, porque se você não tiver qualquer um desses pedaços, não tem como terminar. Por isso que termina menos da metade. E acho que dificilmente muda essa proporção. Nos quadriciclos terminam um terço. E não me estranha. Depois de ter participado, eu entendi porque que só termina um terço. Para mim, isso era só estatística até o dia em que eu passei a fazer parte dela.

É dureza. É duro demais. É muito mais duro do que eu imaginava. Mas tá aí. A minha história, para mim, ela fica para sempre. Foi muito bacana. Eu fiquei muito feliz de ter terminado e não fazer parte dessa estatística dos 50% que abandonam. E para os iniciantes esse índice é ainda menor. 10% dos iniciantes concluem a prova. Então, poxa, eu fazer parte desses 10%, eu sou um privilegiado. Eu fico super contente. Não teria como ter sido melhor para mim. Diante do que eu treinei, do que eu me preparei, eu saí super no lucro. Foi muito melhor do que eu imaginava. 

IDADE PESA NAS PISTAS?

Segundo colocado no Mundial de MotoGP em 2014, Valentino Rossi mostra que é possível atenuar os efeitos da idade e prolongar o auge de um atleta no esporte a motor. Além disso, Jenson Button e Tom Kristensen garantem que o aspecto físico não prejudica. Mas é preciso tomar cuidado especialmente com a motivação, como destaca o australiano Mark Webber, que deixou a F1 aos 37 anos no fim de 2013.

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