GUIA 2023: Mercedes insiste em projeto extremo na Fórmula 1 e dobra aposta com W14
A Mercedes decidiu investir em seu próprio caminho de desenvolvimento ao criar o W14, modelo para temporada 2023 da Fórmula 1. O novo carro possui muito do confuso W13 de 2022, mas com elementos que prometem o salto de performance que o time busca para voltar ao topo do grid. O problema é que a criação ainda não mostrou a que veio
Há mesmo um toque do destino na Mercedes. Quando o W14 surgiu em preto no dia 15 de fevereiro, a mensagem da equipe oito vezes campeã era cristalina: chegara a hora de retomar as rédeas de sua jornada na Fórmula 1. E nada mais emblemático do que lançar mão de um design vencedor – ainda que de maneira simbólica, porque a mudança de pintura tem agora um argumento técnico também – quando se quer voltar ao topo. Por isso, nas frias garagens de Silverstone naquele dia, semblantes altivos misturavam doses de ansiedade e confiança. Era como se tudo voltasse ao normal e a seu devido lugar. Chefe, técnicos e pilotos exaltavam o potencial daquele modelo recém apresentado e de como o trabalho sofisticado da prancheta se materializava em forma de uma obra de identidade própria. E apesar de todos os percalços da temporada passada, a esquadra alemã decidira mesmo pelo caminho mais difícil. E agora dobra, conscientemente, a aposta para a temporada que começa neste fim de semana no Bahrein.
A Mercedes não renunciou a seus conceitos para 2023. A equipe chefiada por Toto Wolff seguiu insistindo em um projeto extremo – tudo bem, é bem menos chocante do que foi em 2022, mas, ainda assim, muito diferente de suas concorrentes – em que continua entendendo que sidepods mais estreitos ajudam na performance geral. Só que o W14 vai muito além disso. O time de engenharia e aerodinâmica da fábrica em Brackley se concentrou inicialmente em aprimorar o assoalho, tão problemático W13. Quer dizer, a ideia foi eliminar os equívocos e aperfeiçoar o comportamento do carro sob o efeito solo. E a primeira grande notícia após as primeiras horas da pré-temporada: o assustador porpoising se foi de vez. O modelo não salta e nem apresenta um irritante desequilíbrio em alta velocidade.
O W14 sob a responsabilidade do diretor-técnico Mike Elliott e do engenheiro James Allison ganhou um layout novo nas laterais, agora mais recuadas, e um desenho diferente das entradas de ar por consequência, além de uma revisão da parte traseira e dos sistemas de suspensão. Houve uma melhora da distribuição de peso e um refinamento dos elementos aerodinâmicos, para corrigir os defeitos do antecessor e reduzir a turbulência. A unidade de potência também foi alvo de ajustes para aprimorar a confiabilidade, enquanto a cobertura do motor tem novo design.
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E diferentemente do ano passado, quando tinha duas versões do carro para testar, desta vez, o time de Stuttgart não perdeu tempo. O modelo que se viu no shakedown em Silverstone foi o mesmo que desembarcou no Bahrein na última semana. Com tantas mudanças, mas ainda persistindo em alguns elementos, a equipe procurou um programa técnico diverso nos três dias em Sakhir. Foi aí que se deparou com questões que podem levar a uma transformação do carro ainda nessa primeira parte de temporada.
Mas antes de falar de possíveis alterações, é importante entender o que aconteceu ao longo das sessões no deserto. O primeiro dia de testes se encerrou de maneira positiva para a equipe alemã. A Flecha Preta não apresentou grandes problemas. Ao contrário, a Mercedes cumpriu todo o programa planejado. “Tivemos um começo sólido para os testes. O carro funcionou perfeitamente do início ao fim, e isso nos permitiu concluir um programa ambicioso para o primeiro dia. Sempre leva alguns dias para entender um carro novo, mas temos uma noção razoável de onde queremos melhorar o equilíbrio. É encorajador que seja uma plataforma muito mais calma e estável para trabalhar do que o W13“, afirmou Andrew Shovlin, o diretor de engenharia do time alemão.
“A imagem do desempenho é sempre desfocada após o primeiro dia, por isso é impossível dizer onde estamos, mas já identificamos várias áreas-chave em que podemos encontrar alguma performance. Vamos trabalhar com a suposição de que estamos tentando recuperar o atraso e precisamos juntar dados para encontrar o melhor caminho antes da primeira corrida”, completou.
De fato, Lewis Hamilton e George Russell foram capazes de acumular quilômetros ao longo do dia inicial. O ritmo pareceu bastante consistente, sem causar um grande impacto, no entanto. E aí o cenário mudou no dia seguinte, quando o W14 apresentou uma queda brusca de rendimento e sofreu um pane hidráulica, quando Russell estava ao volante. A falha tirou tempo essencial de pista e jogou luz sobre um eventual revés da equipe.
Os contratempos da segunda fase das atividades provocaram reações rápidas nas garagens da Mercedes: houve uma reunião de emergência com engenharia e pilotos, além de uma investigação para identificar a causa da perda de performance. Hamilton também terminou o dia alertando sobre problemas de dirigibilidade e velocidade de reta, enquanto George falou sobre a dificuldade em meio de curva.
“Não tivemos um segundo dia forte; parar na pista com um problema de confiabilidade não foi bom e lutamos para equilibrar bem o carro nas condições variáveis. Temos algumas investigações em andamento para entender por que isso tem sido um desafio tão grande hoje, quando ontem era bastante direto”, disse Shovlin após os trabalhos.
Algumas respostas vieram na sequência. O carro não apresentou performance em linha reta, porque parte da questão esteve ligada à configuração, segundo a Mercedes. Como tantas vezes em 2022 – porém, essencialmente para amenizar os efeitos dos quiques –, a equipe optou por uma carga maior de pressão aerodinâmica, e isso limitou o desempenho nessa condição. Outra peça de quebra-cabeças da equipe foi o desgaste de pneus: em temperaturas mais altas, os compostos degradaram mais dentro do acerto do W14. Já em ambiente ameno, como os horários do fim de tarde no Bahrein, o desgaste foi considerado fundamentalmente menor. Essa também foi uma das grandes notícias para os engenheiros.
De toda a forma, a Mercedes reagiu no dia final. Com as informações analisadas da sessão anterior, a última atividade revelou maior confiabilidade e um ritmo mais interessante. George focou em comparação de compostos, usando o pneu C5 para estabelecer uma volta mais rápida de 1min31s442. Mais tarde, passou a andar em ritmo mais perto do de corrida, utilizando o C1 e C2 – os pneus mais duros da gama. Aí foi a vez do heptacampeão assumir o controle e encerrar a jornada inicial dos alemães.
Hamilton conduziu por longos stints, sempre com o C3 – o pneu que será o mais macio na escolha da Pirelli para o fim de semana do GP do Bahrein. Ao cair da noite, Lewis passou a rodar com os C5 até cravar o 1min30s664 – que acabou virando o segundo melhor tempo da pré-temporada. “Parece que fizemos progressos; ambos os pilotos sentiram que o carro estava em uma posição muito melhor em todas as condições hoje e o equilíbrio está mais próximo do que eles exigem em volta única e corrida. É claro que ainda temos trabalho a fazer no ritmo do carro, mas hoje nos deu uma imagem muito mais coerente de onde precisamos concentrar nossos esforços”, analisou o diretor de engenharia da equipe.
É verdade que a Mercedes se recuperou para finalizar a pré-temporada sem grandes problemas. Só que também ficou claro que o desempenho ainda está longe das rivais. O melhor tempo de Hamilton, por exemplo, só veio em cima dos pneus mais macios da gama da Pirelli, enquanto Sergio Pérez, da Red Bull, obteve o registro mais rápido dos testes com compostos C4. A diferença entre eles é de 0s359.
Além disso, estima-se que a Mercedes esteja 0s6 mais lenta que o carro taurino em condições de corrida. É claro que é apenas uma primeira impressão após a pré-temporada, que foi realizada no Bahrein, onde as condições do clima e pista mudam constantemente e acabam por mascarar alguns elementos. Também é certo dizer que sempre há um jogo de esconde-esconde de todo mundo, o que coloca um disfarce sobre os números. Acima de tudo, será uma temporada longa e conta a favor da Mercedes o fato de possuir mais tempo que as rivais para o uso do túnel de vento, por exemplo.
No entanto, também não deixa de ser curioso perceber os comentários do chefão do time da estrela de três pontas. Obedecendo à postura mais apaixonada que assumiu nos últimos anos na F1, o austríaco não escondeu a preocupação com a oscilação de performance no carro durante os testes e deu um toque de realidade: “Não acho que conseguiremos ser tão rápidos quanto a Red Bull e a Ferrari: temos que ser muito realistas. O que é certo é que somos uma grande equipe que tem a capacidade de desenvolvimento rápido. Precisamos entender e analisar os dados. Temos tudo o que precisamos para ser competitivos.”
Também joga contra: a equipe já considerar uma grande atualização, algo próximo de uma versão B, para que o carro se pareça mais com o que os demais estão pensando, como sugeriu Wolff. A declaração é esquisitíssima, uma vez que é um projeto apenas recém-lançado. E dá margem para todo o tipo de interpretação.
Neste cenário todo, é fundamental ainda que a multicampeã alcance a redenção que procura, porque, além de lidar com a possibilidade de reviver um cenário nebuloso em 2023, ainda terá de convencer Hamilton a ficar mais tempo na Fórmula 1, enquanto também cuida de seu futuro em Russell.
De toda a forma, é possível dizer que a Mercedes está em melhor posição do que 2022. Parece haver um entendimento maior deste novo projeto. Também, recursos não faltam e nem caminhos para retomar o sucesso. Só que a esquadra alemã precisa escolher o que quer: fazer a aposta valer o risco ou arriscar sucumbir mais uma vez.
O tempo, implacável que é, dirá.