Diários de Viagem: Jeremy

Eu não ia a Indianápolis neste ano, como nos últimos dois, mas muita coisa culminou para pegar os quase 13 dias fora. A razão principal: eu precisava para os meus dois eus, que raramente se dissociam e carregam, assim, em duplicidade alguns pesos e consequências, que nos fazem pensar e repensar em tudo e, na maioria das vezes, se chega a conclusão alguma. Antes que o burro morresse, ele tinha de lutar para viver

Jeremy spoke in class today.
 
Era Jeremy quem falava naquela classe enorme que acomodava a imprensa em Indianápolis. Não aos membros todos, propriamente; Arnie e algum outro se encarregavam de dar os recados, “attention, members of the media”, fulano de tal se encontra na sala Economaki para as entrevistas ou o piloto X está acordado e alerta e foi liberado a correr. Jeremy é quem falava direto com a gente. A gente ficou próximo de Jeremy fazendo o de sempre nas salas de todo o mundo: fechando. Jeremy avisou feito um pai que faltavam sete minutos, a gente desobedeceu, Jeremy abriu a portinha de seu escritório, a gente levantou e fez um sinal, Jeremy viu que não resolveu, a gente viu as luzes apagadas, Jeremy e a gente rimos e fomos embora juntos.
 
No outro dia, de manhã, Jeremy estava lá questionando: “Mas já chegaram?”.
 
Fazia tempo que não vivia a sensação de ter de olhar ao redor e ver que os colegas viravam gatos pingados até que a preocupação de jantar ou descansar para acordar cedo e recomeçar o ciclo batesse à cabeça no meio de uma notícia. A última havia sido a mesma Indy no Anhembi e, antes, o GP do Brasil de F1 coligado à rádio. Passei muito tempo nos últimos anos numa outra função que não a de repórter, digamos que a de um projetista para a equipe montar o carro apropriadamente e fazer os pilotos voarem. E aí quando se volta às origens, surge a criança que chora e ri como quem pisca.
 
Ainda mais em Indianápolis.
 
Eu não ia a Indianápolis neste ano, como nos últimos dois, mas muita coisa culminou para pegar os quase 13 dias fora. A razão principal: eu precisava para os meus dois eus, que raramente se dissociam e carregam, assim, em duplicidade alguns pesos e consequências, que nos fazem pensar e repensar em tudo e, na maioria das vezes, se chega a conclusão alguma. Antes que o burro morresse, ele tinha de lutar para viver.
 
A luta começava por um frio inesperado nesta época do ano, coisa de 3 ou 4ºC, e uma chuva forte. Na chegada para retirar o carro, surge Peter, o funcionário que é casado com uma brasileira e fala português. Tem algumas coisas que são como sinais. Certamente, aquele representava algum diferente do que as condições meteorológicas indicavam — e ótimo. Do que estaria por vir.

A volta ao Speedway é um reencontro com um velho amigo. Aquele beijo que se dá no rosto, no autódromo vai nos tijolos da reta principal. Tudo está do mesmo jeito, na prática. Até o lugar da sala de imprensa é o mesmo, reservado, segunda fileira, lado direito. Era só questão de se reabituar, e isso envolvia a mim mesmo.

Mas Indianápolis não estava só envolta na corrida. Como no ano passado, o Pacers disputava o mata-mata com o Heat na NBA. Lembro que, nesta época em 2013, resmunguei muito não ter ido cobrir a corrida para aproveitar e ver o jogo ao vivo. Agora, não havia de me escapar. Dois dias após a classificação que definiu o grid, chegamos ao autódromo para comprar os ingressos esperando alguma dificuldade. Tolo como um ouro.
 

A NBA é um choque que clareia para a malfadada realidade que persiste e vai persistir no Brasil no esporte e nos demais setores. Você compra um ingresso pela internet, recebe um e-mail para imprimi-lo em não mais do que 20 minutos, chega ao entorno do estádio com tranquilidade, para em um bar ou em pub e bebe sua cerveja, duas quem sabe, três sempre caem bem, entra pela loja do time e entende como os caras usufruem do capitalismo, compra a camisa, compra a blusa, compra também a caneca e o copinho de shot, compra a meia e deixa a cueca para pagar tudo, e sobe. E você veste a camiseta pelo time, aquela amarela que encontra no seu lugar, respeitosamente guardado. E ao olhar para tudo, surge a criança que via a NBA de Jordan, Johnson, Pippen, Ewing, Garnett. E Miller. Reggie aparece no telão e faz o estádio explodir, e aí vêm Stephenson, George, Hibbert, Hill e West para a final do Leste pedindo para que o povo apoie e grite contra James e o resto dos inimigos que estão entalados pela derrota doída na mesma decisão do ano passado, Beat the Heat.
 
A bola sobe e extasia e petrifica.
A partida da NBA: que diferença para a nossa realidade… (Foto: Victor Martins)
Ao lado, nas poltronas 3 e 4, chega atrasado um casal negro portando um respeitoso chili e cervejas. Ela é a cara da Paula Lima, a cantora; ele tem uma mistura entre Eddie Murphy e Pharrell Williams. Não demora para que ele seja a voz única daquele lado a gritar com uma jogada que bota Miami à frente; à minha esquerda, a menina que veste a camisa da equipe comemora com ele. As provocações surgem, uma ou outra voz se ergue, mas tudo fica na paz e denota uma convivência estranha em simbiose. Estranha para nós, ambientados a cordões de isolamento de torcida, negos que pulam grade para não serem amassados com seus filhos, gentes que atacam por gostos distintos e porque criaram em si uma rivalidade atávica selvagem.
 
Nós, Brasil, sabemos que os EUA são um exemplo. Nós nunca vamos aprender, esquece. Falta vontade, tanto de quem faz quanto de quem ajuda a fazer. Nós não somos educados civilizadamente para assentir que o rival do esporte não é inimigo mortal, tampouco para assistir a um confronto com tamanha qualidade. 82 obamas são, na conversão de hoje, 183 dilmas, e em Indianápolis, em Miami, em Oklahoma City, em San Antonio, cada centavo pago é feito valer.
 
Há uma coisa comum, ao menos, aqui e lá: as pessoas estão cada vez mais seletas e se importam, sim, com a qualidade do espetáculo que veem, bem como dão valor em comer um hambúrguer especial, usar uma jaqueta que dure a vida toda e proteja do frio, adquira o colchão que melhor comporte o sono. Quando a gente se questiona o motivo de as pessoas não encherem mais os estádios de futebol, por exemplo, estar sentado confortavelmente num assento, com uma camiseta ganha, um telão enorme para rever os lances, atividades várias durante cada intervalo pedido ou regulamentar para entreter, que a liga local é atuante em todos os sentidos, promove e pune excessos – vide o exemplo do ex-chefe babaca e racista do Clippers –, isso tudo responde e tira daquele estado de petrificação. A bateria toca, go, Pacers!, é hora de torcer, falta marcada, o locutor anuncia ‘two shots’, e Indiana vai comandando a partida por pequena margem. Aí LeBron resolve atuar, Wade colabora, Indiana comete erros bobos a partir do segundo tempo, e a zica do pântano que Evelyn Guimarães representa se consuma: derrota em casa e torcida que sai triste com o ‘breaking point’.
 
No caminho de volta ao hotel, as cenas vão se repetindo e sendo transferidas para o local especial do HD da memória. Ninguém há de formatar.
 
O dia seguinte logo vem, e vou com a camiseta amarela ganha para o Speedway. Jeremy vê e ri. “Gostou? Pena que não vencemos”. Outros três ou quatro jornalistas, incluso o que estava sentado ao nosso lado, o Bridges, começam a conversar sobre o jogo. O Bridges era engraçado, sempre estava pronto para um comentário qualquer, e foi aquele que pediu uma camiseta do Grande Prêmio, “adorei, mande uma para mim, pago o frete”. Resta só saber onde diabos foi parar a folha onde havia anotado seu e-mail. De repente, Helio Castroneves chega à sala de imprensa com Juan Pablo Montoya e Will Power. “Fala, meu, você tava lá?”, e no fim da rápida conversa, o brasileiro aponta para o colombiano. “Ele tava torcendo contra…”
 
Em Indianápolis, vive-se as 500 Milhas, o Pacers e o Colts, e é assim.
 
Jeremy queria ter estado lá no estádio. “Mas cheguei muito cedo aqui. Mais cedo que vocês”, e começava outro dia em que ocupamos todo o horário em que a sala estaria aberta. Jeremy lá só olhando, e nós levantando para ir embora. “Eu acessei o site de vocês. É muito bom, tem muita coisa”. Ficamos surpresos. “Suponho que você não tenha entendido nada”, eu falei. “Nada, mas vi as fotos e a quantidade de matérias. Dá para entender por que vocês ficam até essa hora.”
 
Também estava sentindo falta de quando a Evelyn perguntava sobre a cobertura: “Você acha que está legal?”, “Mas você gostou?”. A coitada, extenuada, empolgada com sua primeira vez em Indianápolis, pau para toda obra, estava se cobrando. “A gente sempre acha que dava para fazer mais”, alegou. E respondi: “Não dá porque o Jeremy quer fechar a sala”.
 
Pobre Evelyn. Cansada, sofreu um pouco. Um tanto.
 
Uma coisa mudou da última vez que estive em Indianápolis, há três anos: o estacionamento da mídia. Todo ano, os jornalistas são jogados para mais longe. Desta vez, o pessoal entra pela Georgetown, no portão 7, e é aconselhado a pegar parte do miolo da pista de Indianápolis e ir estacionar num gramado visível para quem acompanhou a corrida pela televisão, na reta oposta. Com as chuvas dos primeiros dias, o mato deu lugar à lama.
 
Mas não me conformava com a mudança e queria parar no lugar de sempre. Tradição não se muda em Indianápolis, assim, do nada. A tarefa ficava mais difícil com o Abacartão, o carro verde cor da fruta que alugamos. Para onde se olhava naquele mundão, era fácil achá-lo.
 
Aos ‘amarelinhos’ da CET local, aleguei que Evelyn estava com o joelho machucado e teria de levá-la à beira da torre de imprensa. Colou fácil nos primeiros dias. No terceiro, deu umas 11 da manhã, descemos para beliscar o almoço — a fome estava voraz —, e o pessoal ofereceu massas. Estava ótimo, legal, olhei pela vidraça na escada da subida do terceiro para o quarto andar, Abacartão havia sumido.
 
Não esquentei muito. A Andrea Leite, que trabalha para a IndyCar e conhecedora de cada palmo de Indianápolis, passou pela mesma situação. “Eles rebocam o carro e levam para outro lugar”. Tive de ir atrás de seus conhecimentos especiais para saber onde achar a solução. “Eu vou precisar te levar”, ela disse. Diante do meu espanto, ela explicou: “Os amarelinhos fazem de propósito. É tipo uma lição.”
 
Acompanhei a Dea até o local onde estava seu carro — o correto, onde deveria estar o dessa gente de bem. Fomos pela reta do miolo, caminhamos em direção ao meio das curvas 3 e 4, passamos pelo corredor debaixo da pista, viramos à esquerda, fomos reto, nunca que chega, curva aqui e ali, chegamos. “Eu tinha achado o meu aqui perto”, ela falou, apontando mais à frente.
 
Mais alguns metros, eis que surge Abacartão.
 
Tava lá me esperando, embora não solitário; havia três ou quatro carros ali perto, e o tiozinho ali perto controlando a saída do pessoal para a Georgetown, muito além de onde entramos. Um abraço cálido para um carro que já estava cozinhando sob o sol que passou a não enganar de tarde, e trouxe de volta para a civilização.
O reencontro com Abacartão: era só o mote para uma galhofa (Foto: Andrea Leite)
Faltava contar à Evelyn.
 
Combinei com a Dea que a história terminaria com a cassação da minha licença para dirigir, multa de 1.500 obamas e, diante da minha falência e preocupação, voltaria para o Brasil. Depois de parar Abacartão onde se deve, chegamos contendo o riso para a triste notícia. Evelyn não estava, mas logo apareceu. Fechei a cara, dei ar de seriedade ao negócio, contei a notícia e dei a terrível informação bombástica. “Eu fugi de lá sem pagar e, se os caras pegarem, posso ser preso.”
 
Evelyn duvidou um pouco, mas nós, atores, sabemos manter a farsa. “Por que você faz isso? Por quê?”, perguntou insistentemente. “É maior do que eu, Evelyn”, respondi, baixando a cabeça. “E se eles te pegarem? Eu não vou levar nada na cadeia pra você”, disse, braba.
 
Ainda incrédula, Evelyn esperou eu sair uns minutos para perguntar para Dea a veracidade da história. Parceira, confirmou tudo. Quando voltei, vi a cara da indignação. Ameaçou dar um sermão, mas parou quando revelei que havia dado o nome dela como minha esposa e que os caras iriam atrás dela também.
 
Evelyn só acalmou quando leu em meu blog a farsa. Mas tornou a sofrer quando imitei um coiote quando ela estava no quarto sono ou quando me fantasiei de fantasma com uma blusa musgo e me escondi do lado da cama.
 
A criança que só ri como pisca. Assim foi.
 
Assim foram todos os dias, do Moquiff Inn – nosso primeiro hotel – ou o Super8, ligando a Gabi Santos Pinheiro – popularmente conhecida como GPS –, ouvindo a rota sempre esquisita, tratando-a de forma cordial, “claro, putinha, me leve ao lugar errado”, pegando a 465, depois a 70, seguindo 3,4 km e pegando o acesso à esquerda, depois à direita, a Polco Street, chegando ao destino, “obrigado, putinha, você acertou”, já sendo reconhecidos pelos ‘amarelinhos’ por causa do Abacartão, subindo ao quarto andar, “hi, Jeremy”, e aí via todos os demais trabalhando, o Renan do Couto lá da Europa, Juliana Tesser, Gabriel Curty, Pedro Henrique Marum e, de fim de semana, o Vinícius Piva, no Brasil, todos ajudando, equipe, equipe é isso, a equipe que orgulha, e assim foram todos os dias, as pautas, as risadas, as entrevistas, mais risadas, a ida ao escaninho para pegar o tripé e os microfones para gravar a TV GP, muito mais risadas, o Américo Teixeira Jr. e o Benito Santos, risadas de chorar de rir, renderizar, salvar, esperar, ver o computador desligar, começar tudo de novo, ver Jeremy ameaçando aparecer, rir, ir embora. Cansativo? Sim, mas vital e engraçado. Curioso, talvez. Mas engraçado.
 
Domingo, a não vitória de Helio, lá pelas 9 PM o sol se pondo bem à nossa direita, sumindo no horizonte da arquibancada da reta principal. A despedida de Jeremy, obrigado por tudo, desculpe o incômodo, nenhum incômodo, estamos aqui para isso, eu que agradeço, o elevador que levou ao primeiro andar, a saída da pista. Abacartão estava lá, solitário, longe, e fui pegá-lo para não ter de carregar todas as coisas até ele. Um caminho até curto, mas longo. A virada de cabeça para trás, a torre iluminada, o céu perfeito, o cenário, o olho que sua e brilha, a criança que ri e chora, a dúvida do adeus ou até logo, a churrascaria que nos esperava, é hora de comemorar, e na segunda-feira viriam as compras, mais compras, maldito capitalismo.
 
Na segunda, o bolso da calça mostrava a chave do #439 que havia esquecido de devolver. Teria de entregar para alguém na terça aproveitando que visitaríamos o museu. O problema é que a sala de imprensa não estaria aberta.
 
O último dia da viagem chegou, comemos, arrumamos tudo, partimos para o Speedway, fui até a torre de imprensa, porta aberta, quarto andar, lá estava ele, Jeremy. As últimas palavras e os novos agradecimentos que ele talvez não entenda quais, “see you next year”.
 
Try to forget this. Try to erase this. From the black board. Jeremy me fez apagar do quadro negro as ideias que caminhavam para uma rua sem saída, para o Jeremy e a história que levou à música.
 
Jeremy falou para a gente se ver no próximo ano. Assim vai ser.
Nos vemos, Indy (Foto: Victor Martins)

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