Conta-giro: Vitórias desde toque em Spa deixam Hamilton com faca, queijo, goiabada e Rosberg na mão

Coincidência ou não, Lewis Hamilton ganhou todas as corridas desde o toque entre ele e Nico Rosberg no GP da Bélgica e, com 17 pontos de vantagem a três corridas do final, já coloca o alemão em uma situação desconfortável

COMO NUM PISCAR DE OLHOS, o campeonato de 2014 voltou à situação que existia após o GP da Espanha: Lewis Hamilton se preparando para buscar a quinta vitória consecutiva. Desde o GP da Bélgica, em que ele e Nico Rosberg se tocaram na segunda volta, o britânico venceu todas as corridas e reverteu uma situação bastante desfavorável na classificação. Em vez de 29 pontos de desvantagem, agora tem 17 de vantagem a três corridas do final. Diante disso, Rosberg começa a se perguntar outra vez como será possível derrotar um piloto que ganhou nove de 16 GPs.

Nunca, na história da F1, um piloto perdeu o título tendo vencido oito ou mais provas, tampouco tendo emplacado uma sequência de quatro triunfos — o que Hamilton já conseguiu duas vezes neste ano. Não fossem as três etapas em que ele não pontuou, contra duas de Nico — vencedor de apenas quatro provas —, a diferença certamente poderia ser maior.

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Esse desempenho acachapante de Hamilton aos domingos permite dizer que o ano do inglês está sendo melhor e faz com que Rosberg precise arriscar, como ele fez no GP da Rússia. Não se ganha uma corrida na largada, mas, na F1, uma mudança de posição na primeira volta pode mudar toda a história. E foi o que o germânico tentou ao frear tarde na curva 2 do circuito de Sochi. Não deu certo: ele passou muito do ponto, travou as rodas e foi reto na chicane. Teve de parar nos boxes para colocar novos pneus e, dali em diante, fez uma prova impecável com um carro muito superior para salvar o segundo lugar e garantir 18 pontos.

Lewis Hamilton comemora vitória em Sochi (Foto: AP)

Pode-se esperar por momentos semelhantes nas próximas corridas.

A disputa pelo título tende a ser um pouco diferente a partir de agora, visto que a Mercedes assegurou a taça que considerava a mais importante: a do Mundial de Construtores. Entre os Pilotos, Daniel Ricciardo segue com chances matemáticas, mas elas são remotíssimas. Assim sendo, Hamilton e Rosberg devem ter mais tranquilidade para brigar — desde que vençam as corridas.

Não, não tem nada definido a favor de Hamilton, até porque Rosberg depende apenas de si. Vitórias nos Estados Unidos, no Brasil e em Abu Dhabi lhe garantem o caneco.

De qualquer modo, não deixa de chamar a atenção a maneira como o jogo virou rapidamente.

Gestão de crise

A Mercedes esperava — e não negava — que, em algum momento da temporada, Hamilton e Rosberg fossem se tocar. O tão aguardado contato entre os carros 6 e 44 aconteceu na segunda volta do GP da Bélgica, na curva Les Combes, e deixou os dirigentes do time prateado em pânico. O toque abriu caminho para uma inesperada vitória de Daniel Ricciardo com a Red Bull-Renault no rápido circuito de Spa-Francorchamps, mas, mais do que isso, pareceu jogar por água abaixo qualquer resquício de bom convívio entre Lewis e Nico.

O negócio pegou fogo mesmo quando Hamilton saiu do debriefing da equipe para falar com a imprensa e entregou para quem quisesse ouvir que Rosberg tinha batido de propósito. Wolff saiu a público depois e não negou. Mais tarde, vieram os eufemismos: não foi uma batida premeditada, ele apenas não evitou a colisão. No fundo, pouco importava.

Estava mais do que claro que o imbróglio exigia uma intervenção. E rápida. A primeira tentativa, no motorhome, já havia falhado. A segunda aconteceu no isolamento de Brackley — um pequeno vilarejo nos arredores de Silverstone —, a uma distância segura dos holofotes e com os dois pilotos já mais calmos. Roupa suja se lava em casa.

No fim daquela mesma semana, a escuderia convocou Hamilton e Rosberg à sede para uma conversa mais clara sobre o acidente e suas consequências — a equipe não escondeu o encontro, tornou pública a conclusão alcançada e ainda pediu, por meio das redes sociais, a opinião dos fãs: adotar ou não adotar ordens de equipe? Algo inédito na F1.

A reunião também foi uma forma de suavizar a chegada do time à corrida seguinte, em Monza. Ficou decidido que outro toque não seria tolerado e que ambos estavam livres para disputar o título, dentro desse cenário mais rígido. A esquadra ainda garantiu que a política da igualdade de condições seguiria.

Toto Wolff, diretor-executivo da Mercedes (Foto: Getty Images)

Mas algo ainda precisava ser feito, e a mão prateada pesou para o lado de Nico, que teve de assumir a responsabilidade e se desculpar com o colega de time. Rosberg também foi punido com uma sanção disciplinar — a equipe nunca esclareceu qual foi exatamente a medida aplicada ao piloto.

Dá para dizer que o time mudou a tática e decidiu que era hora de assumir o controle de verdade.

Sendo assim, a expectativa para o GP da Itália era enorme. O primeiro grande embate entre os dois adversários estava marcado para uma pista que se ajustava como uma luva aos fortes motores da Mercedes. E foi curioso perceber a reação de ambos ao longo do fim de semana, assim como a posição dos próprios dirigentes do time. Em um primeiro momento, a Mercedes tentou se afastar de novas polêmicas. E a primeira grande manobra foi a tentativa de minimizar a sabatina dos jornalistas.

Em uma peculiar coletiva de imprensa na quinta-feira, a FIA chamou ambos, o que evitou um encontro mais ‘corpo a corpo’ com os repórteres. E os colocou na primeira fila da bancada. Entre eles, Fernando Alonso — piloto que possui em sua ficha dois dos mais emblemáticos episódios de ordens de equipe da história da F1. O espanhol rejeitou o cargo de pacificador que chegaram a lhe oferecer, mas foi bastante político em suas respostas sobre o embate dos companheiros de equipe e a postura do comando do time prateado.

“Lewis e Nico estão em uma posição privilegiada e possuem um objetivo claro, que é ganhar o título. Do lado de fora, vamos apenas tentar aproveitar essa bela batalha ao máximo. O esporte, no fim das contas, é feito disso", exclamou. Tinha como ser mais neutro?

Lewis e Nico sequer mencionaram o comando ou a postura da equipe prateada no episódio — apenas celebraram o fato de continuarem livres para brigar pelo campeonato.

Apesar de pouco contato, visual ou físico, mantiveram o discurso do comunicado da Mercedes após o encontro em Brackley. Ou seja, a ‘dura’ surtira efeito.

Nico Rosberg e Fernando Alonso conversam na coletiva (Foto: Xavi Bonilla/Grande Prêmio)

Toto Wolff é que não deixou de responder sobre a maneira como a Mercedes conduziu a situação e defendeu a transparência no caso, além das punições internas. Para muitos, a política da igualdade é quase impossível de ser colocada em prática na F1. Ainda assim, o austríaco salientou que há formas de se impedir um choque entre os dois sem ferir a regra que o time vem mantendo em vigor desde o início do ano.

"Antes de tudo, é preciso dizer que, se esse episódio tivesse acontecido com qualquer outra equipe, teria sito tratado como um incidente de corrida apenas", afirmou Wolff aos jornalistas em coletiva acompanhada pelo GRANDE PRÊMIO na Itália. "Agora, nós não queremos ver esse tipo de coisa acontecer entre companheiros de equipe e acho que isso é válido em qualquer time, ainda mais quando seus dois pilotos estão lutando por vitórias, por pódios e pelo título. O que fizemos foi deixar claro que queremos manter a nossa filosofia de deixá-los livres para correr, mas existem regras. Afinal, é um campeonato de pilotos e é o mais importante. No entanto, não pode haver nenhum contato entre eles, e isso foi dito no início do ano. E também vale, como falei, para qualquer equipe. O que fizemos foi deixar isso bem claro.”

Por muito pouco, a situação não fugiu de controle — exatamente como já ocorrera em Mônaco. Apesar da maneira serena e quase sempre transparente de levar o time, Wolff soube se impor. "Eu confio nos meus dois pilotos. Nós tivemos uma discussão muito clara, nós sempre dissemos a eles que isso jamais poderia acontecer, ainda mais na atual fase do campeonato. Mas foi preciso enfatizar isso naquele momento", disse.

Na história da F1, dificilmente a paz prevaleceu novamente em um pós-guerra. Os confrontos entre Alain Prost e Ayrton Senna na McLaren ou Sebastian Vettel e Mark Webber na Red Bull que o digam. Mas, aparentemente, a abordagem inicialmente confusa, mas predominantemente pacífica de Wolff, Paddy Lowe e Niki Lauda funcionou.

“As coisas parecem estar normais e tranquilas. Claro que foi difícil depois de Spa, mas tudo parece ter voltado ao normal”, declarou Hamilton no fim de semana do GP de Cingapura. Rosberg fez coro ao companheiro de Mercedes e foi além, dizendo que o clima é mais do que bom. “A atmosfera no time é excelente. Está um clima muito bom no momento”, garantiu. “Nós conversamos e seguimos em frente. Estamos sempre fazendo o possível para que tudo corra bem este ano. Internamente, claro, é muito intenso, mas estamos trabalhando e, até aqui, está tudo bem”, completou.

Na pista

Hamilton contrariou o estereótipo que existia sobre ele ao emendar essa segunda sequência de vitórias do campeonato. Sempre se disse, desde 2007, que o inglês se deixa abalar quando se vê acuado, ou que se irrita facilmente e deixa de agir de forma 100% racional. Cede às emoções. A crise pós-GP de Mônaco foi notória. Demorou bastante para o campeão de 2008 colocar a cabeça no lugar e finalmente se mostrar mais tranquilo. O segundo lugar no Principado, o abandono no GP do Canadá, os erros cometidos no fim de semana do GP da Áustria e a péssima classificação no GP da Inglaterra deixaram seu humor péssimo. O quadro só virou com a vitória em Silverstone, tudo para outra sequência de momentos delicados ter início: a quebra do disco de freio em Hockenheim, o incêndio em Hungaroring e a batida em Spa.

O Hamilton que temos visto desde então está impressionando pela velocidade mesmo que não tenha feito duas das quatro poles disputadas. Perdeu terreno no começo em Monza por causa de um defeito no controle de largada, mas foi se recuperando com tempos de volta rapidíssimos e assumiu a ponta ao induzir Rosberg ao erro na chicane. Teve sua cota de sorte em Cingapura, quando o adversário teve a cota de azar dele ao ver seu carro com problemas elétricos antes mesmo de alinhar no grid.

Em Suzuka, Hamilton conquistou a vitória com uma ultrapassagem de classe sobre o alemão, por fora na famosa curva 1, e a história do GP da Rússia já foi contada.

Pelo andar da carruagem, só mesmo outra brusca reviravolta para mudar o rumo do campeonato a favor de Rosberg.

As imagens da Mercedes em 2014
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