Galvão Bueno, do Brasil

A voz do Brasil tem nome, e todo mundo sabe disso. Galvão Bueno chega aos 70 anos com história extensa que uniu grandes momentos técnicos e emotivos à visão clara que tinha sobre o que a locução esportiva deveria ser. Mudou o cenário, alterou os panoramas e se reconstruiu, também, com uma revolução de meio de carreira tão sutil quando abraçada. Solta o ritmo do Olodum!

Há mais ou menos 100 anos, a cultura brasileira passava por enorme impacto transformador. A geração que despontava naquele período pós-Primeira Guerra Mundial minava o tradicionalismo artístico preponderante e começava a introduzir o modernismo que nascia nas vanguardas europeias, mas com um tempero à brasileira. O movimento marcaria suas garras na história com a Semana de Arte Moderna de 1922, consagrando o novo ciclo.

No papel de um dos líderes do modernismo brasileiro, Mário de Andrade, homem de inúmeros talentos e figura das mais brilhantes das artes no país, tornara-se grande teórico do movimento. Dentre os muitos traços marcantes da obra e das defesas de Andrade, estava a necessidade da aproximação entre escrita e fala. O brasileirismo estaria não só na gama de personagens e histórias a serem abordadas na literatura, mas em como isso seria feito, largando a mão do português formal e erudito do parnasianismo. A alternativa era adotar regionalismos e até alguns erros tradicionais da língua falada. Uma língua brasileira unificada, pois.

Viajamos no tempo e na história, porque há muito que dizer sobre a formação da imprensa brasileira do século XX e o espaço sonegado ao esporte durante os anos. A popularização trouxe mais linhas, páginas e espaço. As transmissões de futebol no rádio surgiriam nos anos 1930, com direito a alcance nacional durante a Copa do Mundo de 1938. As transmissões na TV chegariam nos anos 1950.

Eis que, nos anos 1970, surgia um jovem Galvão Bueno na Rádio Gazeta, depois na TV, passando rapidamente pela Record e fazendo anos de Bandeirantes antes de ser contratado pela TV Globo, em 1981, por onde saiu apenas por um breve hiato na Rede OM. São 46 anos de televisão, a grande parte destes como narrador. Galvão atravessou a fase em que o locutor era somente uma voz, virou imagem e depois retrato que passou a servir de referência para quem quer que fosse ou buscasse um narrador competente. O Galvão apresentador também ganhou espaço, primeiro nos próprios eventos, depois em programas inteiros.

Galvão Bueno completa 70 anos neste 21 de julho (Foto: Reprodução)

E mudou. Mudou a si próprio e mudou o estilo, dele e das narrações televisivas.

Em 2019, quando passou para o outro lado do microfone como entrevistado do programa ‘O Grande Círculo’, do SporTV, o companheiro de incontáveis transmissões, Tino Marcos, lembrou de uma pergunta que fizera ao narrador muitos anos atrás. Se já é o narrador #1 da maior emissora o país, qual o objetivo tinha em frente?, inquiriu. “Quero fazer cada vez mais como eu acho que deva ser feito, não como me impõem a fazer”, respondeu.

Assim foi e tem sido durante as últimas quatro décadas. Galvão, da voz mais aguda, encaixada no tradicionalismo das transmissões televisivas, sobretudo as globais, foi dando lugar a um narrador autoral, dono de clareza invejável sobre como aplicar expressões e bordões ocasionais, a maneira de conduzir transmissões e como trazer a informação esportiva para o jornalismo de TV.

Para os filhos dos anos 90, acostumados desde sempre com os editoriais de um bloco de telejornal sem as amarras de teleprompter, parece natural que seja feito assim. Mas é normal por causa de Galvão. Assim como são os diálogos entre narradores e comentaristas, marca indelével das transmissões brasileiras.

Emoção imposta aos momentos de clímax de eventos esportivos são fundamentais do estilo brasilis, mas a leveza na relação entre narrador e comentarista, que tão naturalmente embalam jogos e corridas por aqui, não são vistas naturalmente mundo afora. Esse, sim, o traço extremamente particular das narrações brasileiras e mudadas com o poder de persuasão e a popularidade de Galvão Bueno. É irônico que o traço mais delicioso de coletividade nas narrações esportivas tenha sido esculpido ao longo de bons anos pelo solista #1 da maior emissora do país.

É aí, também, que está o gênio: sem medo de perder força por ter visão cristalina de como sua ocupação tenha de ser conduzida não apenas por si próprio, mas por seus pares e compreendida pelo público.

O estilo de Galvão está fora do óbvio e de medidas pré-estabelecidas para a televisão, mas foi o talento de se encaixar em diferentes formatos impostos que propiciou o reconhecimento e, com ele, a influência. Na força de influência, Galvão mudou o jogo da narração e abriu um portal que passou a abraçar a originalidade.

Aqui, evidentemente, não esquecemos seus contemporâneos Luciano do Valle e Silvio Luiz, também grandes. Silvio sempre foi um original nas próprias maneiras, mas dentro de um estilo completamente diferente: cresceu usando de muitos bordões e do sarcasmo, saindo completamente das transmissões mais tradicionais. Galvão, não. Queria abraçar o tradicionalismo e mudá-lo, o que fez com sucesso, que, agora, olhando para trás, aumenta ainda o tamanho da conquista.

Galvão teve seus bordões e usou com habilidade. A maiorias deles, sazonais, serviam para um período histórico. Arrastar os ‘Rs’ foi uma marca inesquecível, ainda que tenha saído de cena há uma década e meia, com o fim dos Ronaldos, de Romário e Roberto Carlos na seleção brasileira. A maioria das frases de Galvão Bueno repetidas por todos os cantos são expressões utilizadas não mais que uma porção de vezes. Bordões, sim, na cabeça do público, mas não do narrador. Se o público, 26 anos depois, ainda usa o tetra como marca de felicidade, é uma prova de decisões tomadas em questão de segundos e tão memoráveis que perduram no imaginário.

É prata, é prata, é prata, é prata

Embora o futebol e o automobilismo tenham guardado as mais famosas narrações de Galvão Bueno, as minhas favoritas particulares são olímpicas. O ‘vai perder, vai ganhar. Perdeu… Ganhou’ das Olimpíadas de 2008 são demonstração de uma rapidez de raciocínio magnífica e da leitura de situação para transformar em momento inesquecível um equívoco. Tudo na velocidade de um evento vivo que se desenrola em frente aos olhos do mundo inteiro. A medalha de prata do revezamento 4×100 do Brasil em Sidney 2000 é um desbunde de perfeição técnica. Não apenas de influência, popularidade e carisma vive um colosso da comunicação, e a quantidade e clareza de informações e emoção oferecidas ao longo de 38 segundos são inacreditáveis.

O Brasil foi e é terra de grandes narradores – talvez mais que qualquer outro lugar no mundo. A forma como os radialistas, desde Ary Barroso nos anos 1940, conseguiam vender os eventos são ímpares. Mas a revolução da narração da TV veio com Galvão como principal dínamo. Por talento e por alcance.

Galvão Bueno ao lado dos colegas Cleber Machado e Luiz Roberto (Foto: Globo)

Alcance, esse, que faz dele a voz mais conhecida do Brasil. Não há brasileiro que desconheça o timbre, o estilo e o nome. Goste ou não de Galvão Bueno, você já viu e ouviu em exaustão a descrição de eventos pelas lentes dele. Viu em diferentes fases, quando a voz aguda virou mais grave, os gritos ficaram mais curtos, com pontes criativas, expressões que precedem a emoção e capacidade de vender momentos como ninguém mais. A mudança de meio de carreira, depois de já ser O Cara da TV por tanto tempo, foi sutil e imperceptível enquanto acontecia. Com Galvão as mudanças são naturais correções de rota, suaves, sem que jamais deem a impressão de que esteja em curso uma revolução estilística. Mas ela existiu.

Ao longo dos últimos 40 anos, Galvão comandou a rede de TV com maior alcance do Brasil para uma população em crescimento exponencial. Ele é A Voz do Brasil.

O país assistiu defronte aos olhos a troca do parnasianismo televisivo pelo estilo dinâmico e arrojado que ganhou as transmissões nas últimas décadas, tudo com Galvão como principal dínamo. A TV mais bruta, mais clássica, erudita, até, pelos padrões de alcance, foi dando origem a uma linguagem popular, que dialoga fácil com todas as camadas da diferente e desigual população brasileira, sempre embalada com o fundamental e subestimado elemento do ritmo. Revolução construída tijolo a tijolo.

Na TV e no esporte, Galvão fez o trabalho de Mário de Andrade. Trouxe o Brasil de verdade, o ritmo que beija a brasilidade, a ocasional passada de ponto que exalta o personagem nacional, seus regionalismos e singularidades.

Aos 70 anos, Galvão é o modernismo brasileiro das telas.

(Que toque o ‘Tema da Vitória’)

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