Os casos de assédio, racismo e homofobia na Áustria deixaram a F1 estarrecida e motivaram diversas notas de repúdio, mas esse problema é um velho conhecido de Interlagos. E na falta de atitudes contundentes da parte da categoria, mulheres se unem em campanha cobrando respeito nas corridas
Brasil, novembro de 2013. A Fórmula 1 chegava à reta final, e São Paulo receberia, no último fim de semana do mês, o encerramento do Mundial daquele ano. A corrida em Interlagos ainda marcaria a última vitória de Sebastian Vettel, já tetracampeão, pela Red Bull. O casamento vitorioso e que colocou a equipe austríaca no patamar das grandes da Fórmula 1 estava chegando ao fim depois de quatro títulos consecutivos e de um 2014 que seria de dificuldades.
Caberia, portanto, ao tradicional autódromo brasileiro ser palco dessa importante marca. E foi disposta a registrar na memória cada instante daquele fim de semana histórico que Beatriz Rosenburg decidiu acompanhar o então GP do Brasil — hoje GP de São Paulo — in loco. Não pela primeira vez, já que havia realizado o sonho de assistir à F1 no ano anterior. E a experiência foi tão única que decidiu voltar em todas as oportunidades que fossem possíveis.
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As lembranças daquele fim de semana, no entanto, ganharam tons obscuros. Nas arquibancadas do setor V, no final da reta oposta, Beatriz estava querendo apenas o que todas as mulheres que frequentam autódromos querem: assistir à corrida. Acompanhar os treinos. Vibrar pelo seu piloto e equipe favoritos. Quando a prima que a acompanhava decidiu sair do seu lado para pegar um lanche, a jovem, que tinha 20 anos na ocasião, se viu diante de um dos medos que mais atormentam mulheres que se veem sozinhas em meio a uma multidão.
“Um homem me abordou, me pediu um beijo e eu neguei, e mesmo assim ele ficou insistindo. Até que ele puxou meu braço, e eu fiquei sem reação. Eu tinha 20 anos. Você não espera que isso vá acontecer no lugar onde você está”, relatou Bia, como costuma ser chamada pelos amigos, ao GRANDE PREMIUM.
O lugar, aliás, era um dos mais caros setores de Interlagos por conta da visão privilegiada e por ser um ponto importante, onde costumam acontecer boas disputas por posições. Foi na reta oposta, por exemplo, que Lewis Hamilton ultrapassou Max Verstappen, assumindo a liderança e levando o público à loucura na corrida do ano passado.
Mas naquele momento, Beatriz não conseguiu mensurar absolutamente nada sobre o que estar naquele lugar significava. A única coisa que passava pela sua cabeça, além do pavor que acomete as mulheres que são colocadas nesse tipo de situação, era encontrar respostas para aquela atitude. “Durante muito tempo passei por uma sensação de culpa, procurando se eu tinha errado, se a minha roupa tinha sido culpada, mesmo estando de calça jeans, camiseta e casaco”. A “sorte”, como ela mesma diz, é que outro homem notou o que acontecia e foi defendê-la. “Ele viu que o cara estava me puxando e conseguiu afastá-lo de mim. Hoje, eu teria um comportamento diferente, até porque, atualmente, tenho conhecimentos de defesa pessoal”, acrescentou.

O estigma da roupa
Culpar a roupa é uma atitude que sempre acompanha mulheres vítimas de assédio. Foi da mesma forma com Alice (nome fictício a pedido da torcedora), também em 2013, também em Interlagos. Na ocasião, então com 18 anos, ela foi ao GP do Brasil pela primeira vez acompanhada do hoje marido, mas nem a presença de um homem — que costuma intimidar os valentões que crescem para cima de mulheres sozinhas — foi suficiente para livrá-la do assédio nas arquibancadas.
Alice relatou sua história ao GP*, do momento em que chegou ao autódromo radiante para enfim ver o ídolo Vettel em ação, da mesma forma como Beatriz, até ficar cara a cara com o fantasma do assédio. Ela contou que usava uma camiseta feminina oficial da Red Bull, com um decote em V, e por muito tempo culpou a roupa pela situação que viveu naquele fim de semana.
“Esse corte, em mim, ficava muito decotado, só que essas coisas não passam pela sua cabeça, e eu fui com a camiseta. No primeiro dia, sexta-feira, chovia. Eu estava no setor G e só sabia que tinha de chegar cedo para guardar lugar. No meio do dia, o sol apareceu, e eu estava de casaco. Tirei o casaco e desci com o meu meu marido para pegar um lanche. Quando descemos, um cara segurou meu marido pelo braço e ia mexer comigo, só que quando ele viu que meu marido estava usando a mesma camiseta da torcida organizada que ele, disse ‘Ah, você é daqui'”, contou.
“Depois que pegamos a comida, eu queria ver como era o setor inteiro, e, assim, do começo do setor até a ponta, ele foi chamado de ‘sócio’ e a gente ouviu o canto ‘a gostosa sobe e o viado fica’. E você não tem para onde correr quando isso acontece”, continuou Alice. Para o resto do fim de semana, ela não pensou duas vezes: decidiu aposentar a camiseta comprada especialmente para torcer por Vettel. “Meu pai então comprou outra camiseta para mim, uma masculina, fechada até o pescoço.”

Mas o assédio nunca é motivado pela roupa, ainda que a vestimenta seja usada até hoje como justificativa para motivar tal crime. Mesmo com um modelo muito mais largo em seu corpo, Alice se viu diante de uma situação ainda pior quando foi ao banheiro sozinha. “Quando eu saí do banheiro, aqueles caras de sexta formaram uma rodinha e começaram a mexer comigo. Eu voltei para o banheiro, fiquei encurralada por eles e mandei mensagem para o meu namorado, para ele me buscar. Aí, quando um homem chega, eles param de mexer. Passei o resto da corrida sem ir ao banheiro.”
A importunação voltou a acontecer em 2019, em outro setor, numa área privada para convidados de uma das patrocinadoras da corrida. Dessa vez, holandeses a encurralaram. Coincidentemente, o tema assédio ganhou as manchetes este ano também por causa de torcedores holandeses presentes no Red Bull Ring, que recebeu o GP da Áustria de Fórmula 1. Na ocasião, uma torcedora de Hamilton em meio ao “exército laranja” de fãs de Verstappen, viveu uma situação absurda: teve o vestido levantado por um grupo de cinco holandeses e, ao confrontá-los, ouviu que fãs de Hamilton não mereciam respeito.
A situação primeiro foi compartilhada no Instagram pelo perfil “Team LH Netherlands”, em apoio ao heptacampeão. Mas não demorou para cair no Twitter e viralizar. Em todos os lugares, torcedores cobravam atitudes da FIA (Federação Internacional de Automobilismo), estarrecidos com o que havia acontecido, e também com outras situações que se tornaram de conhecimento público pelas redes sociais. Pilotos também começaram a se manifestar, primeiro o próprio Hamilton, dizendo-se “enojado” com o acontecimento, depois Vettel, cobrando o banimento de tais agressores dos autódromos.
Respeito e união além da nota de repúdio
Do lado da F1, por sua vez, a “atitude” veio muito bem escrita e trabalhada: “Ficamos cientes de relatos de que alguns fãs foram alvos de comentários completamente inaceitáveis vindos de outros torcedores durante o evento. Levantamos isso com o promotor [da corrida] e com a segurança local e ouviremos todos que relataram tais incidentes e estão levando muito a sério. Esse tipo de comportamento é inaceitável e não será tolerado. Todos os fãs devem ser tratados com respeito.”

“Nota de repúdio é fácil, qualquer um escreve, acho que atitudes precisam ser feitas”, opinou Beatriz. “Deixar só na nota de repúdio não vai mudar, infelizmente. No momento em que um for identificado e banido, os outros vão pensar duas vezes antes de praticar um ato de assédio, de homofobia, racismo nas arquibancadas. Nota de repúdio fica complicado, é que nem o We Race as One, bonitinho, estampando ali, mas o que foi feito? Qual o resultado real?”, questionou a jovem, que só voltou a frequentar Interlagos depois de conseguir companhia de outras meninas.
Mas a indignação pela falta de importância da parte das autoridades a um problema comum só crescia. Foi quando ela decidiu fazer algo além dos protestos na internet para chamar a atenção. “De início, pensei em fazer um cartaz, mas poderia molhar. Fiquei pensando, e como havia tido eleições há pouco tempo, vi um adesivo eleitoral e pensei ‘Adesivo pode molhar, não vai se destruir e é fácil de espalhar, dar para outras pessoas'”, disse Beatriz, que pôs em prática o projeto na semana do GP do Brasil de 2018.
“Isso foi numa segunda-feira. Eu montei a arte, na terça estava no Centro do Rio de Janeiro, numa gráfica, pedindo para fazer adesivos, mas só consegui 30, por causa do prazo. Fui para São Paulo com esses 30 adesivos, cheguei lá falando da campanha, e todas as mulheres aceitaram superbem. Na sexta, eu já não tinha adesivos para dar a mais ninguém. E assim começou a campanha #RespectWomen, uma coisa mais séria atrelada com o meu blog. No segundo ano, em 2019, fiz mais de 100 adesivos; no último ano, fiz mais de 200. E só multiplica.”
Bia também criou uma corrente de apoio nas redes sociais para mulheres que vão a Interlagos esse ano e querem a companhia de outras mulheres para não ficarem sozinhas. Porque, no momento, a única coisa que as torcedoras têm é o suporte delas mesmas, e Beatriz sentiu isso quando uma amiga em especial relatou a importância de ter recebido um dos adesivos da campanha. “Ela foi sozinha para o setor Q em 2019, não nos conhecíamos, e então entreguei o adesivo para ela na quinta. Foi quando ela disse que estava sozinha, mas havia se sentido muito acolhida com os adesivos”, relatou, bastante emocionada. “É uma coisa tão simples… saber que consigo fazer alguma diferença me deixa muito feliz.”
Os depoimentos das mulheres e a luta de Bia motivaram a criação da página “Assédio F1” no Twitter. A pessoa responsável pelo canal de comunicação, que pediu para não ter sua identidade revelada, conversou com o GRANDE PREMIUM e disse que quis fazer do espaço mais um meio para chamar a atenção das autoridades e promotores do GP de São Paulo para um problema que ainda persiste. “A minha intenção com a página é dar mais voz às mulheres, amplificar esse assunto nas redes e mostrar que essas pessoas não tem vez. Também ajudar as mulheres irem aos autódromos com mais segurança encontrando outras para ir junto. Meu objetivo: que diminuam esses casos e que as mulheres possam ir aos autódromos com mais segurança.”
Caminho longo a percorrer
Enquanto as mulheres se unem e buscam um meio de serem, enfim, ouvidas, a Fórmula 1 permanece sem uma diretriz mais concreta sobre o que será feito para trazer mais segurança aos autódromos. Depois da declaração oficial, a categoria resolveu também lançar uma campanha, intitulada “Drive it Out” (“Expulse-os”, em tradução livre), pedindo ajuda aos próprios fãs para identificar quem são os agressores tanto nas arquibancadas quanto também nas redes sociais. O GP* também procurou a organização do GP de São Paulo para saber se, após os inúmeros relatos de assédio no ano passado, há um plano de segurança em andamento para o evento desse ano. A única resposta enviada até o fechamento desta matéria, no entanto, foi mais uma nota reforçando o repúdio, mas sem a confirmação de uma ação específica:
“O GP São Paulo de Fórmula 1 tem firme compromisso com as pessoas e com o respeito às diferenças. Não toleramos práticas de discriminação por conta de raça, gênero, credo, orientação sexual. Também repudiamos práticas de assédio moral e/ou sexual. Essa postura está expressa em normativos que são divulgados para nossos públicos de relacionamento, dentre os quais colaboradores, fornecedores e prestadores de serviço. Cada vez mais, em todo o mundo, as pessoas, corretamente, cobram das empresas e das instituições o respeito e a valorização da diversidade. Não há mais espaço para manifestações de preconceitos, sejam elas explícitas ou implícitas. Qualquer prática de discriminação ou de assédio em nossos eventos constitui transgressão da Lei e de nossas normas internas, e como tal será encarada. Todas as ocorrências que chegarem ao nosso conhecimento serão objeto de rigorosa apuração, e posterior comunicação às autoridades”, encerrou a promotora do evento.

Beatriz contou que pensou em procurar a organização do GP de São Paulo na esperança de conseguir mais projeção para a campanha #RespectWomen. Ela também chamou mulheres para gravarem depoimentos em vídeos falando por que gostam de Fórmula 1 e como se sentem sobre os casos de assédio nas arquibancadas. “A ideia é criar uma campanha de conscientização prévia.”
“Acho que ainda temos um caminho muito longo, porque essa iniciativa está partindo das torcedoras. Se fosse institucional, poderia falar ‘vai diminuir porque estamos tendo apoio da própria organização’, e isso acaba inibindo [os assediadores]. Ia ter um peso maior se a organização falasse. Pode fazer diferença? Pode, mas é um passo pequeno ainda, o apoio seria muito melhor. E é por isso que eu resolvi escrever os adesivos em inglês, justamente porque, se uma câmera me pegar, vão pensar ‘por que ela está falando que é mulher, que gosta de F1, e está falando para respeitar as mulheres?’ É tentar chamar a atenção para um assunto que é extremamente necessário. A F1 deveria fazer alguma coisa”, acrescentou.
A falta de clareza causa nas mulheres que já sofreram assédio em Interlagos um sentimento de frustração, mas ao mesmo tempo confirma o que já se espera — ou melhor, o que não se espera. “No Brasil, acredito que não vai mudar, a gente sabe o que acontece aqui quando vamos denunciar”, lembrou Alice. “Eles fazem essas brincadeiras com uma certeza de que não vai acontecer nada. Ano passado, uma menina gravou, e o cara falava ‘grava mesmo’. Eles sabem que não vão sofrer nada, primeiro pela falta de policiamento. Você vê alguns seguranças dentro do autódromo, por ser um evento particular, mas eu acredito que deveria existir policiamento”, salientou, destacando ainda que já frequentou eventos de outras categorias, como o Mundial de Endurance, mas os casos de importunação sexual que sofreu aconteceram apenas na F1, e ainda sugere uma razão: as torcidas organizadas.
A Torcida Pisa Fundo Brasil foi uma das que receberam denúncias de casos de assédio provocados por seus membros, especialmente no setor G. O GRANDE PREMIUM entrou em contato com os responsáveis pelo grupo para saber se haveria algum esquema especial para impedir tais casos este ano, mas não obteve resposta. A única palavra da organização sobre o tema foi emitida ainda no ano passado, também em nota de repúdio contra o “suposto caso de assédio” durante o GP de São Paulo de 2021. O texto, assinado apenas pela “Torcida Pisa Fundo Brasil”, ressalta que o grupo “não é responsável pela organização do setor G, e o fato de termos nossas bandeiras presentes na arquibancada, não significa que nos locais onde elas estão presentes, todos são membros da torcida. Orientamos aos torcedores que se sentirem importunados que procurem algum responsável pela organização do evento e solicitem apoio policial, quando necessário.”
A esperança de Alice é que o barulho das próprias torcedoras gere a mudança necessária. “Com mais barulho, a gente tem esperança de que algo seja feito e não fique só entre a gente, falando no Twiter, que eles possam nos auxiliar. É um evento que você se prepara o ano inteiro, e uma situação dessas frustra o sonho. O que eu quero e desejo é que nós, mulheres, possamos ter a liberdade que os homens têm, de irem sozinhos, fazer amizades no lugar e se sentirem seguros. E aproveitar o evento ali.”
Por fim, Bia manda um recado direto a todas as meninas e mulheres apaixonadas por Fórmula 1, que sonham em ir a uma corrida in loco, mas sentem medo. “Digo sempre desde o início da campanha que nenhuma mulher deve deixar de ir ao autódromo por conta desses casos. Entendo que bate uma insegurança quando você está sozinha, isso aconteceu comigo, mas atualmente é possível achar outras mulheres que também vão ao autódromo e se sentir acolhida. Se não souber por onde começar a procurar, fizemos uma comunidade no Twitter onde as mulheres estão encontrando companhias e montaram grupos no WhatsApp para se encontrarem em diferentes setores, tem várias trocas de informações como dicas e experiências. Não deixem de realizar seus sonhos e saibam que onde uma mulher está, ela faz toda a diferença. Vamos juntas!”
*Texto com colaboração de Evelyn Guimarães
Acesse as versões em espanhol e português-PT do GRANDE PRÊMIO, além dos parceiros Nosso Palestra e Escanteio SP.

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