Coluna Warm Up, por Flavio Gomes: Rato

Que dia, Rato, que dia aquele 20 de novembro! Que grande história, talvez a maior história de uma única corrida disputada no Brasil, certamente a mais emocionante de todas as Mil Milhas. E você participou dela, e hoje, no dia do aniversário de sua primeira vitória na F1, eu queria lembrar dessa derrota

 
Motivos para escrever a você nunca faltarão. Efemérides também não. Com uma carreira tão rica, dá até para fazer uma lista de aniversários. Estreia na Europa, estreia na F1, primeira vitória, primeiro título, segundo título, saída da Lotus, chegada à McLaren, saída da McLaren, assinatura com a Copersucar, último GP na F1, primeiro teste na Indy, primeira corrida nos EUA, primeiro título, primeira vitória em Indianápolis, segunda, acidente de Michigan, última corrida na Indy, e dá para fazer o mesmo, nessas duas categorias, com pódios, poles, pontos, os primeiros e os últimos, as chegadas e as despedidas.
 
Hoje, por exemplo, é aniversário da sua primeira vitória na F1: 4 de outubro de 1970 no Glen, dando o título póstumo ao seu parceiro de Lotus, Jochen Rindt. Data importantíssima. Nesse dia, você que já tinha aberto a porta da Europa para a brasileirada, escancarou a dita cuja como que dizendo aos caras lá: olha aqui, a gente não só guia direitinho, como sabe ganhar corrida, também. Podem trazer o resto.
 
E trouxeram, como não? Depois de você vieram o Moco, o Wilsinho, o Alex, o Luizinho, o Chico, o Nelsinho, o Ayrton, e todos os outros que formam uma lista bem gorda e ainda não acabou, embora esteja em vias de. Assim como farta, em quantidade e em talento, é a relação dos que entraram pela outra porta cuja tranca você se encarregou de abrir com destreza e categoria, a dos EUA. Gil, Cristiano, Helinho, Tony… É para se orgulhar. Ô se é.
 
Mas não é nem da Indy nem da F1 que quero falar com você hoje, Rato — nada de Emmo, nem mesmo Fittipaldi; Rato, mesmo, é como seus melhores amigos sempre te chamaram. Vou aproveitar os 43 anos da primeira vitória entre os grandões para falar da maior derrota da sua vida. Que daqui a pouco faz aniversário, também. Foi nos dias 19 e 20 de novembro. De 1966.
 
Claro que você sabe do que estou falando, Emerson. Das Mil Milhas de 1966.
 
Eu sempre achei as histórias dos derrotados melhores que as dos vitoriosos, no esporte. Em todos eles. Os dramas são mais duradouros, o júbilo de um triunfo é efêmero. Tristeza não tem fim, felicidade, sim. E essa, certamente, deve doer mais em você do que qualquer outra.
 
OK, dor, dor,  talvez seja um exagero. Hoje, 47 anos depois, é claro que a dor já passou. Ficou a lembrança da dor, da frustração, da tristeza. A memória dela, não a dor em si. Quando converso com algumas pessoas que estavam em Interlagos naquele dia, 47 anos atrás, ou outras que conhecem essa história de cor e salteado, todas dizem a mesma coisa: que você trocaria qualquer coisa por aquela vitória.
 
Será?
 
Arrisco dizer que sim. Afinal, títulos e vitórias na F1 um monte de gente tem. Uma vitória nas Mil Milhas com um GT Malzoni, essa nunca ninguém conseguiu, ninguém em sã consciência acreditaria que alguém conseguiria e ninguém mais na história da humanidade vai conseguir.
 
E vocês quase conseguiram. Foi por três voltas. Você, Rato, mais o Jan Balder, o Omelete, mais o Crispim chefiando os mecânicos, mais o Jorge Lettry, e os meninos da cronometragem, os mecânicos, a turma toda emprestada pela Vemag. Era a Equipe Brasil, com mais dois Malzonis e duas carreteras, a do 13, encurtada, e a #11, de teto baixo. Todos os cinco brancos com os números em bolotas pretas, como no time oficial, embora a Vemag já tivesse fechado seu departamento de competições alguns meses antes e já tivesse sido vendida para a Volkswagen. Mas a fábrica deu apoio, equipamento, pessoal. Só não pagou pneu, gasolina e comida. O resto era Vemag. Vemag era Brasil.
 
E o Malzoni #7, o seu e do Jan… Motorzinho DKW de 1000 cc de cilindrada, um pouco mais fraco que os outros dois, comandados pelo Marinho (#10) e pelo Norman (#4), ambos 1100 cc, um pouquinho mais bravos. Afinal, eram pilotos mais experientes, e vocês não passavam de dois garotos. Na coluna traseira, pintaram um rato e um omelete. O Rato e o Omelete. Que dupla. Rato, 19. Omelete, 20. Quem imaginaria que vocês brigariam pela vitória? Ninguém. Eram café-com-leite, quase. Todos conheciam vocês, viviam em Interlagos, mas no meio daquelas feras, da turma da Jolly, da Willys, da Dacon, não, não dava para apostar no Rato e no Omelete.
 
E brigaram. Aconteceu de tudo naquela corrida, é verdade. Como sempre acontecia, em Mil Milhas. Problemas mecânicos, asfalto se soltando, mangas de eixo quebradas, rodas arrebentadas, visibilidade zero, faróis queimados, gente atravessando a pista, mas uma hora, quando o dia amanheceu e as coisas começaram a ficar mais claras, todo mundo achava que o Karmann-Ghia Porsche da Dacon, do Moco e do Totó Porto, iria acabar vencendo. Motorzão 2.0, um canhão. Que carro, aquele KG… Mas eles também tiveram problemas, acho que na caixa de direção, e de repente olha lá! Três Malzonis em primeiro, segundo e terceiro! Dava para acreditar? Não, não dava.
 
Finalzinho de prova e vinha voando a carretera amarela #18 do Camilão e do Celidônio, que tinha perdido umas voltas por punição — lâmpada queimada. Mas era um carrão, motor Corvette, quem seria capaz de segurar aquele V-oitão empurrado pela massa do Canindé? Pelos cálculos do Lettry, eles iriam acabar passando os outros dois Malzonis, mas você e o Omelete podiam ganhar. Por pouco, mas podiam. Seria, Rato, a maior vitória da sua carreira. Indianápolis que me desculpe. Você pode até não concordar, mas não importa. Para mim, nada que qualquer um fizesse no automobilismo mundial dali em diante seria comparável a ganhar as Mil Milhas com um Malzoni.
 
Mas aí aconteceu aquilo tudo, o motor começou a falhar, ficou em dois cilindros, para, não para, o Omelete não queria parar, você sinalizou para ele parar, ele acabou parando, e o Crispim trocou uma vela com o motor funcionando, mas não tinha jeito, um dos pistões estava derretendo, voltou a falhar, e o Camilão chegando, e todo o teatro do box deles mostrando o funil, talvez eles precisassem abastecer, parece que precisavam mesmo, e acabou que o Camilão ganhou, na verdade o Celidônio recebeu a bandeirada, o Marinho também passou vocês, e no fim deu um terceiro lugar.
 
As fotos daquele dia são maravilhosas, as poucas que vi, uma delas sua cara de choro no pódio, ao lado do Camilão sorridente e do Celidônio segurando um Mug. Claro que dá tristeza, mas já se vai quase meio século, não tem tristeza que dure tanto. Como eu disse, fica a lembrança da tristeza, não a tristeza em si.
 
Que dia, Rato, que dia aquele 20 de novembro! Que grande história, talvez a maior história de uma única corrida disputada no Brasil, certamente a mais emocionante de todas as Mil Milhas. E você participou dela, e hoje, no dia do aniversário de sua primeira vitória na F1, eu queria lembrar dessa derrota.
 
Porque, no fundo, não foi derrota nenhuma. Foi, sim, uma linda vitória, sua e dos meninos da Vemag, levar aquele carrinho até o fim, chegar tão perto da maior de todas as vitórias numa corrida que teve 201 voltas em 14 horas e meia, e foi por três, apenas três, que você não pôde abraçar o lindo troféu da Bardahl, “Glória imortal aos vencedores” está escrito nele, mas poderiam acrescentar “e aos terceiros colocados na edição de 1966” que, certeza, todos concordariam.
 
Bem, parabéns pelos 43 anos daquele dia no Glen. Merece um brinde, este 4 de outubro, e não deixe de fazê-lo. Mas no dia 20 de novembro, faça outro e lembre-se da derrota. Da derrota mais vitoriosa de todos os tempos, glória imortal aos derrotados, devo dizer, glória imortal a você, Rato, ao Omelete e a todos os outros.
 
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