GUIA 2020: Liberty Media acerta ao mudar regras e fica perto de novo Pacto da Concórdia

2020 seria um ano de transição em termos de regulamento e de muita negociação nos bastidores. Afinal, há um Pacto de Concórdia para ser assinado. Acontece que a pandemia mudou tudo e acelerou as conversas entre Liberty Media, FIA e equipes. Agora, o grupo que detém os direitos precisa trabalhar em dobro

A Fórmula 1 enfim será capaz de colocar carros na pista, depois de meses de incertezas. Afinal, a crise instaurada pelo novo coronavírus mudou o mundo e a forma de viver. E isso, claro, atingiu em cheio o Mundial. Diante de fábricas paradas e sem a menor condição de realizar a temporada neste primeiro semestre, os chefes da principal categoria do esporte a motor tiveram de arregaçar as mangas e garantir a sobrevivência do campeonato, em um ano em que deveria pensar apenas no novo Pacto da Concórdia, contrato que será assinado pelo Liberty Media — empresa dona da F1 —, a FIA (Federação Internacional de Automobilismo) e as equipes e que vai regular as relações econômicas e comerciais do esporte. A Covid-19 acabou por alterar todo esse caminho.

O esporte se encaminhava para um processo de revolução com a adoção de novos regulamentos técnico e esportivo, uma nova geração de carros e a expectativa de ser mais atraente, imprevisível e empolgante. Só que tudo isso precisou ser adiado para assegurar o presente. Enquanto o vírus se alastrava pelo mundo, a Fórmula 1 tratou de rever suas regras. Depois de várias conversas e negociações entre o grupo detentor dos direitos da F1, a entidade que rege a categoria e as equipes, ficou aprovado um pacote significativo de mudanças, que abrangeu a parte esportiva, técnica e, principalmente, financeira.

A partir dessa decisão, que reduziu o teto orçamentário, estabeleceu medidas para limitar os custos das equipes e restringiu também os avanços dos times de ponta, a F1 vai viver duas temporadas (2020 e 2021) sem qualquer mudança de regulamento, como forma de dar tempo aos competidores para as adaptações necessárias antes da revolução. E tudo isso sob valores bem menores. Talvez tenha sido essa a iniciativa mais importante desse período sem provas. E que certamente terá um peso enorme nas tratativas do novo documento. Que agora ganham força.

O atual acordo, assinado em 2013 e que tem duração até 31 de dezembro de 2020, é responsável por determinar o tamanho da fatia do bolo, ou seja, regular a distribuição de receita para a FIA e as equipes do grid, além de regular também quanto cada time recebe de premiação ou tem de pegar de inscrição a cada início de temporada.

O Pacto da Concórdia também determina quesitos amplos, como regras sobre os direitos de transmissão da categoria, ou aspectos mais específicos e que evoluem com os anos, como taxas pagas pelos promotores para realizar uma etapa do Mundial e veiculação de imagens de um fim de semana de corrida.

 
Chase Carey tem a missão de fechar um novo acordo com as equipes em 2020 (Foto: Rodrigo Berton/Grande Prêmio)

Desde quando o Liberty Media assumiu o controle da F1 por um valor total de US$ 8 bilhões — ou de R$ 26,4 bilhões à época — e encerrou a era Bernie Ecclestone, que durou quase 40 anos, o esporte conviveu com a esperança de viver novos tempos e, sobretudo, de ser mais justo e competitivo. Contudo, tal cenário passa diretamente pela distribuição de receita, uma vez que há um enorme abismo entre o que recebem as grandes equipes em relação às suas adversárias de menor poderio financeiro.

Para citar a referência mais recente, o dinheiro que as equipes receberam da F1 em 2019 pelos resultados obtidos na temporada anterior totalizou US$ 1,004 bilhão — ou R$ 3,8 bilhões na cotação da época. A distribuição do dinheiro respeita três divisões: uma paga valor fixo para todas as equipes que terminaram o campeonato no top-10 (R$ 132,4 milhões); a segunda leva em conta a posição no campeonato e a terceira é um bônus que somente algumas equipes recebem: Ferrari, Mercedes, Red Bull, McLaren e Williams.

A Ferrari ainda recebe outro bônus por permanência histórica, ou seja, a equipe mais longeva do grid, por fazer parte da F1 desde seu ano de fundação, 1950. Assim, o total que a escuderia de Maranello recebeu da F1 em 2019 foi de R$ 775,5 milhões, mais até que a Mercedes, que chegou ao pentacampeonato em 2018 e embolsou R$ 669,5 milhões. 

 
Mais antiga marca do grid, a Ferrari tem poder de veto e ganha bônus por longevidade (Foto: Ferrari)

O abismo entre as equipes é claro quando se analisa os números das outras escuderias: a Red Bull faturou R$ 575 milhões, contra R$ 378,2 milhões da McLaren e R$ 276,1 milhões da Renault. Fecham a lista a Haas, com R$ 264,7 milhões; Williams, com R$ 227 milhões; Racing Point, com R$ 223,1 milhões; Alfa Romeo, com R$ 211,8 milhões, e a Toro Rosso, que escancara ainda mais a disparidade entre o fim e o início do grid. A equipe de Faenza, que hoje se chama AlphaTauri, recebeu somente R$ 196,7 milhões em receitas da F1 em 2019.

Com mais dinheiro, equipes de ponta como Ferrari, Mercedes e Red Bull têm maior capacidade de desenvolvimento, de contratar os melhores pilotos, engenheiros e mecânicos e também uma possibilidade maior de construir os melhores carros. Como uma coisa chama outra, bons carros proporcionam melhor desempenho e, assim, atraem mais patrocinadores, que dão ainda mais sustentabilidade financeira ao projeto da F1.

Em contrapartida, a Williams, por exemplo, enfrentou uma perda considerável de patrocinadores ao mesmo tempo em que perdeu performance de forma brusca, a partir de 2018. Tendo de recorrer a pilotos pagantes, que garantem uma parte do orçamento, mas não têm capacidade técnica de entregar grandes resultados de forma constante, o time de Grove entrou em espiral descendente que culminou com a terrível temporada de 2019, marcada por atrasos na entrega do FW42 e por apenas 1 ponto somado no campeonato. Não à toa, mudou completamente a filosofia e adotou uma nova estratégia de mercado que pode até culminar com a venda completa da companhia.

Esta é a disparidade que o Liberty Media tem a missão de dissipar para a próxima era da F1. Os desafios são enormes neste sentido porque, se as equipes do meio e do fim do grid têm o desejo de ganhar uma fatia maior do bolo e, sobretudo, de ser mais competitivas, as escuderias de ponta não querem abrir mão desta primazia.

 
A Mercedes aceitou mudanças nas regras para torna F1 mais equilibrada (Foto: Mercedes)

Chefão da F1, Chase Carey não esconde que deseja ver uma F1 mais democrática, na qual “os menos favorecidos também devem ter uma chance de ganhar, enquanto na temporada passada só três equipes [Mercedes, Ferrari e Red Bull] foram competitivas para isso”.

Diretor-esportivo da F1, Ross Brawn pediu que as principais equipes do grid ‘cortem na carne’ e aprendam com a lição dada pela NFL, a liga de futebol americano, que virou uma competição bilionária justamente muito por conta do sacrifício feito pelos times mais ricos.

“Houve um tempo no futebol americano onde havia um sistema de receita muito distorcido, e as duas principais equipes conseguiram a maior parte do dinheiro, enquanto o resto sofria. As duas melhores equipes sacrificaram sua posição para ter uma solução igualitária”, comentou o dirigente.

“Quando isso se tornou muito mais bem-sucedido, porque houve uma maior propagação em termos de competição, aquelas duas equipes superaram o que estavam recebendo antes porque o esporte tornou-se muito mais bem-sucedido”, complementou Brawn, prevendo um grande desafio nos próximos três anos.

“Há uma lição para nós lá. É um grande exemplo do equilíbrio entre esporte e área comercial. Os novos proprietários da F1 e meus colegas enxergam desta forma. A questão é sobre fazer crescer todo o negócio. Se nós vamos poder fazer isso? Vai ser um grande desafio, mas podemos tentar”, disse o dirigente.

Ross Brawn é a principal ponte entre a chefia da F1 e as equipes (Foto: Rodrigo Berton/Grande Prêmio)

Para tornar a F1 do futuro financeiramente viável, menos inacessível e mais competitiva a todos, o ponto vital é o teto orçamentário, já aprovado por unanimidade pelas equipes — fato raro. Inicialmente, no regulamento firmando em 2019, cada escuderia teria um limite de gastos de US$ 175 milhões (R$ 960 milhões na cotação atual) nas três primeiras temporadas, mas os valores não englobam muitos custos como motor, salário dos pilotos e gastos em marketing e viagem.

Agora, no entanto, esse valor caiu significativamente. Por conta dos efeitos da pandemia, o Liberty, a FIA e as equipes conseguiram entrar em um acordo ainda mais expressivo. Ainda que as regras de 2021 tenham sido adiadas para 2022, o limite de começa já na próxima temporada e será feito da seguinte maneira: no ano que vem, o teto será de US$ 145 milhões (R$ 795 milhões), depois sofre uma queda para US$ 140 milhões (R$ 747 milhões) em 2022 e US$ 135 milhões (R$ 739 milhões) no período de 2023-2025, com base em uma temporada de 21 etapas.

Pode-se dizer que aqui foi o primeiro grande passo dado pelo Liberty rumo ao entendimento com as equipes do grid.

Ter um esporte mais atraente e competitivo sob todos os aspectos é vital para que a F1 possa atrair mais montadoras e interessados em terem suas equipes. Já se sabe que 2021 vai compreender a chegada da Aston Martin como substituta da Racing Point, mas a F1 quer mais e se espelha muito na sua concorrente elétrica, a Fórmula E, que tem no seu grid marcas pesadíssimas como Mercedes, Audi, BMW, Nissan, Porsche, Grupo PSA (Citroën e Peugeot) e Jaguar.

Se a Fórmula E tem como principal atrativo a transformação da indústria automobilística e o crescimento exponencial da tecnologia dos carros elétricos ao redor do mundo, a F1 tem de passar por mudanças fundamentais para seguir sendo a categoria mais atraente do esporte a motor. Tudo isso passa pela formação de novos fãs, mas também por cultivar a paixão do público de longa data. 

A FE vem atraindo mais montadoras (Foto: Jaguar)

Nos primeiros anos, a era Liberty Media cumpriu bem o papel de impulsionar a marca F1 pelo mundo com a ampliação nítida do alcance da categoria nas redes sociais, música oficial, nova logomarca, festivais e ‘fan fests’ em várias partes do planeta, criação de serviço de streaming próprio e também da coprodução, ao lado da Netflix, da série ‘Drive to Survive’, que estreou sua segunda temporada no fim de fevereiro. Some-se tudo a isso ao fato de a F1 atual ter no grid um dos maiores pilotos de todos os tempos, Lewis Hamilton, e prodígios que despontam como potenciais campeões do mundo no futuro como Max Verstappen, Charles Leclerc, Lando Norris e George Russell, por exemplo.

Agora, porém, é a hora de tornar o esporte comercialmente viável e atrair mais patrocinadores. Novamente a comparação é com a Fórmula E, que traz uma gama de marcas atreladas: TAG Heuer, Boss, BMW, Saudia, Allianz, Bosch, Heineken, Enel, Modis, Antofagasta Minerals e Moët & Chandon.

A F1 é patrocinada pela companhia aérea Emirates, a cervejaria holandesa Heineken e também, a partir deste ano, pela saudita Aramco, empresa de petróleo e gás, além de contar com a Rolex como responsável pela cronometragem, a Pirelli como fornecedora única de pneus e a DHL como parceira de logística. Em junho, a categoria assinou um acordo de três anos com a empresa alemã de lubrificantes Liqui Moly.

Tornar o esporte mais viável do ponto de vista financeiro e comercial é o grande desafio do Liberty Media para a F1. Antigamente, a maior parte da renda da categoria era advinda dos direitos de transmissão do esporte vendidos para as emissoras por todo o planeta. Mas a evolução das tecnologias e da própria maneira como o fã consome o esporte a motor no dia de hoje faz com que a F1 tenha de buscar mais fontes de receita.

A expansão do calendário segue sendo vista como crucial para o Liberty Media faturar mais com as taxas pagas pelos promotores, engordar o caixa do esporte e ainda levar a F1 para horizontes jamais explorados antes. Mas os planos vão ter de esperar um pouco mais. O Vietnã estrearia no início da temporada, mas Hanói parece carta fora do baralho para este ano. A Holanda, que voltaria a receber o Mundial após 35 anos, cancelou sua corrida em 2020.

A definição do calendário, aliás, é um dos desafios que a categoria vai enfrentar nos próximos anos, e isso vai depender, claro, de como o mundo vai lidar com o coronavírus e como cada país vai ser afetado economicamente pela pandemia.

Hanói se preparou para receber a F1 em 2020. Mas a primeira corrida do Mundial no Vietnã vai ter de esperar (Foto: GP do Vietnã)

As cartas estão, definitivamente, todas na mesa. É chegada a hora de o Liberty Media provar seu valor, mostrar a que veio e colocar em prática a F1 que foi proposta desde que assumiu o controle do esporte. Uma F1 mais sustentável, aberta à diversidade, que agrade os fãs com grandes corridas, belos e rápidos carros, tenha alguns dos melhores pilotos do mundo e, sobretudo, que seja mais justa sob todos os pontos de vista.

Que venha a F1 do futuro. Ainda que esse futuro leve mais tempo que o previsto para chegar.

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