Ana Addobatti, fundadora e diretora da Livre de Assédio, fala sobre as medidas para evitar a importunação e o assédio. E mais especificamente, avalia as iniciativas feitas em grandes eventos, como a Fórmula 1, que ainda sofrem muito para acompanhar o esporte nas arquibancadas do mundo

Assédio moral e sexual não é uma exclusividade das arquibancadas da Fórmula 1. Mas é crescente a pressão da sociedade por mecanismos que tornem os ambientes livres desta prática.

Desde 2017, Ana Addobbati atua com consultoria e projetos escalonáveis de prevenção ao assédio. Fundadora e diretora da start-up Livre de Assédio, a pernambucana já impactou mais de 164 mil pessoas no Brasil e recebeu o Selo Ilmpact como uma das iniciativas de maior impacto para a igualdade de gênero na América Latina.

Em entrevista ao GRANDE PREMIUM, Ana, que começou o trabalho em 2017 quando a marca era Women Friendly, falou da experiência no combate ao assédio em grandes eventos e avaliou o caso da Fórmula 1. Na visão da especialista, é preciso de ações mais consistentes para que os praticantes do abuso recebam uma mensagem clara: vocês não são bem-vindos aqui.

“É um ambiente de consumo — bar, restaurante, balada, evento —, é muito interessante ver você criar essa transformação de cultura, porque, infelizmente, a gente tem uma cultura ligada à bebida, aos espaços heteronormativos, em que se a mulher ousa ocupar esses espaços, ela está ali suscetível a passar por qualquer tipo de violência. É como se fosse um espaço que não fosse preparado para gente”, apontou. “Era como era encarado o Carnaval. Tá aqui? É para tudo! É como acontece hoje na Fórmula 1 por causa de uma cultura heteronormativa, então é uma potência muito grande você transformar isso, só que para você ir além da mobilização de um post na rede social que diga que não aprovamos, você tem de ter mecanismos dentro. E para ter mecanismos dentro, é o treinamento, é o estímulo à denúncia, é um canal que seja efetivo, é ter um segurança que está ali empoderado para agir de forma preventiva e expulsar aquela pessoa que fere esse código de ética que a organização está colocando, de que aqui a gente não vai tolerar assédio, porque aí vai se perceber que é efetivo, que não é só pinkwash”, opinou.

Addobbati cita como exemplo o trabalho feito na festa Carvalheira na Ladeira, que ocorre durante o Carnaval do Recife, onde iniciativas que começaram com o treinamento de funcionários permitiram uma mudança na imagem do evento. “Antigamente, as conversas nas redes eram de homens que diziam: ‘Vou para lá que é onde tem mais mulher bonita para pegar’. Então tinha uma coisa muito pesada, mas a organização nos chamou dizendo que não queria aquele tipo de comportamento. A gente ficava com as meninas, com a camiseta, não só fazendo mobilização, mas agindo junto com os seguranças, para tirar quem assediava”, explicou.

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Ana Addobatti, fundadora e diretora da Livre de Assédio (Foto: Reprodução)

Ana conta que recebeu reportagens sobre as medidas antiassédio adotadas pela organização do GP de São Paulo, mas vê erros na metodologia aplicada. “Primeiro, é óbvio que você não vai ter controle total de quem entra. É um GP que tem um histórico, e acho que isso é o que pesa, no sentido de você ter uma comunidade ao redor da marca GP, inclusive até trazendo a perspectiva de mundo, que acredita que ali o código de ética é: pode tudo. Quer dizer, não é um código de ética, é um código comportamental”, destaca.

“Teve uma coisa que eu não vi: posicionamento do GP antes do evento, pois essa questão, você sinaliza assim: vai ter segurança, código de ética, não vai ser tolerado. Isso não foi sinalizado antes”, alerta. “O que aconteceu foi, pelo que eu entendi: tem um canal de ética que fica no site, e eu não sei o quanto isso é visível para todas as mulheres, e o quanto esses homens que frequentam entenderam que aquilo ali é efetivo. Tinham algumas meninas andando lá, mostrando ‘respeito’. Em nível de mobilização, estaria ok, mas em nível de resolução, isso é muito complexo. Primeiro: essas meninas têm força para ser um elemento coercitivo? Se brincar, elas podem até ter sido, como eu já vi com a ‘Não é não’, alvo de piadas”, lembrou.

Informada pela reportagem de que esta é uma iniciativa pessoal de um grupo de torcedoras, que não só fez as camisetas, mas que também se uniu antes do GP de São Paulo para organizar grupos para que as mulheres não fossem sozinhas a Interlagos, Ana respondeu: “Isso foi muito corajoso dessas meninas, elas se expuseram.”

“Qual é o compromisso que o cara que está pagando caro — e no Brasil a gente aprende que ‘porque eu estou pagando, eu posso tudo’ — vai entender que tem com essas meninas? Virou uma ação corajosa de um grupo de meninas, de um código comportamental, mas que não necessariamente isso tenciona o ambiente para proteger as demais mulheres”, pondera.

Às vésperas do GP de São Paulo de 2022, a organização declarou que soube dos casos de assédio nas arquibancadas por meio das denúncias feitas pelas vítimas em vídeos do GRANDE PRÊMIO. A partir disso, a diretora de imprensa do evento, Marília Frias, revelou que foi feito um mapeamento dos fatos para “desenhar as ações” que seriam tomadas. Addobbati entende, contudo, que tomar conhecimento pela imprensa também revela um problema, já que mostra que a segurança do evento não estava tendo o devido cuidado com o público nas arquibancadas.

O GP de São Paulo de 2022 também foi palco de episódios de assédio e importunação (Foto: Rodrigo Berton/Grande Prêmio)

“Me chama a atenção eles saberem a partir de vocês. Isso não começou a acontecer agora. Começou a ter visibilidade. Então significa que nem tinha segurança para prestar a atenção ou tinha, mas aquilo não era valor para ele, cuidar daquela mulher. Inclusive, vale citar o código do consumidor. Uma pessoa que sofre assédio em um ambiente de consumo pode processar se essa pessoa pedir ajuda e for negligenciada”, orienta.

Perguntada pelo GRANDE PRÊMIO se muitas empresas e eventos ainda se surpreendem por terem casos de assédio e até racismo em suas dependências, Addobbati respondeu: “Eu acho que é não se enxergar, tá? Acho que hoje em dia, as pessoas já admitem muito. Eu sempre falo: é impossível em uma sociedade tão violenta, LGBTfóbica, machista e racista, essas relações não invadirem seus espaços de consumo, diversão e trabalho.”

A reação do GP de São Paulo às denúncias foi a criação de um canal pelo site e também a orientação para que eventuais vítimas procurassem o auxílio de funcionários identificados como ‘staff’. Muitas das mulheres ouvidas pelo GP, porém, apontam que só souberam dessa iniciativa por meio de um grupo de torcedoras, já que ela não foi amplamente divulgada pelos organizadores.

A fundadora da Livre de Assédio aponta a falha na divulgação como um problema e usa como base a pesquisa ‘Bares sem Assédio’, realizada pela marca de uísque Johnnie Walker e pelo Studio de Ideias, que ouviu 2.221 mulheres maiores de 18 anos no Brasil por meio de um questionário online entre os dias 18 e 25 de fevereiro de 2022. De acordo com o estudo, 89% das mulheres ouvidas não denunciaram as agressões, seja por não saber como (24%), por medo (18%) ou por vergonha (17%).

O mesmo estudo revelou que 53% das entrevistadas já deixaram de ir a um bar ou a uma balada por medo de assédio e que apenas 8% das ouvidas frequentam esses estabelecimentos regularmente sozinhas. Além disso, 13% das mulheres jamais se sentem seguras em ambientes assim, enquanto 41% só se sentem confortáveis junto a um grupo de amigos. A margem de erro do estudo é de 2,1 pontos percentuais.

“O staff estava sinalizado do tipo: conte comigo para caso de assédio? Provavelmente, o staff hoje é procurado quando tem briga, furto. De novo, a questão do assédio é muito invisibilizado, tanto para quem comete, porque acha que não está fazendo nada de mais, quanto para a vítima”, afirma.

“Sobre o site, acho louvável que tenha. É interessante que tenha esse canal, mas é o mínimo, né? Será que uma pessoa que sofre assédio vai procurar, dar a cara a tapa, vai escrever ali? É anônimo? Vai acontecer o que se a denúncia acontecer on-line? Tem alguém para resolver e acolher? Tem tantas coisas aí. Acho louvável eles pensarem em ter, mas se funciona, eu tenho as minhas dúvidas”, comenta.

Indagada pelo GRANDE PRÊMIO se, em um ambiente majoritariamente masculino, como é o caso nas arquibancadas de um GP de Fórmula 1, uma iniciativa de combate ao assédio é afetiva sendo realizada apenas na duração do evento, Addobbati respondeu: “Dada a situação de histórico, tem de começar bem antes. Essa conversa tem de ser colocada, tem de ter alguma liderança se implicando nisso, se comprometendo, segurança tem de ser treinado, isso tem de ser divulgado amplamente na imprensa, nas redes sociais, nos pontos de comunicação, inclusive na venda do ingresso.”

Em alguns casos, como no metrô do Rio de Janeiro, por exemplo, a saída para lidar com o assédio foi criar ambientes reservados exclusivamente para mulheres. Ana entende, contudo, que, ainda que essa seja uma iniciativa compreensível no transporte público, não é o melhor caminho para as arquibancadas de uma corrida.

“Essas questões são bem controversas, porque quando a gente fala do transporte público, eu entendo que é uma forma de o pessoal colocar ali, indo e vindo, alguém em segurança entendendo que: ‘olha, já que eu não consigo ter efetivo policial para garantir que essa mulher saia de casa com sua filha para trabalhar, para estudar, e não seja importunada, eu dou essa opção’. Mas o ideal seria que todo mundo respeitasse”, considera. “Inclusive também porque é uma forma de minimizar, porque se a mulher não estiver no vagão rosa, ‘estava pedindo’. Mas entendo que em uma situação tão grave, ter o vagão rosa, é interessante, porque você está falando de uma mobilidade em um espaço que, por mais que tenha uma concessionária, é um espaço público ainda. Muito mais do que um Carnaval, muito menos controlável”, continua.

“Agora, eu não acho legítimo você colocar as mulheres isoladas numa arquibancada sozinha quando você tem um evento que é tão caro. É como se fosse a FIFA Fan Fest lá no Catar. 90% é homem e as 10% que estão vindo aqui a gente pode até dar um cantinho, mas qual a mensagem que você está dando? Para a mulher que quiser ir para ali e não estiver nesse poleirozinho, nessa arquibancada, ela está pedindo? É muito caro o dinheiro e é um lugar que é fechado, que é controlado, para você ir para este tipo de atitude”, insiste.

O caminho para combater o assédio sexual passa, antes de mais nada, pelo chamado letramento estratégico do público interno. É preciso preparar o pessoal que vai lidar com as vítimas e com os assediadores.

“O que a gente detectou quando eu comecei a desenhar esse modelo de negócio? Ao conversar com garçom, com segurança, principalmente em lugares que tinham caso de assédio que extrapolou para a imprensa, quando eu perguntava: ‘poxa, você sabe o que é assédio, o que é violência de gênero, violência doméstica?’. ‘Sei’. ‘Mas você viu a pessoa apanhando e não fez nada?’. ‘Ah, é que eu achei que meu chefe ia ficar com raiva, porque o cliente consome muito, então não quis me meter’. É um pensamento paralelo. Então, se eu não tenho esse cliente me endossando…”, conta, explicando, em seguida, que o letramento para o público é uma outra camada, que exige uma mensagem clara por parte dos organizadores.

“A gente vai usando linguagens muito parecidas com o desafio daquele ambiente. Se você vai para um evento LGBT, a gente vai falar de transfobia, a gente vai falar de queer, mas com uma linguagem que fica aí visível nos pontos de contato com o cliente e mostrando que isso não vai ser tolerado. Então tem um letramento para fora, sim, mas não adianta ter para fora se para dentro não aconteceu. As coisas têm de andar juntas”, insiste.

Em se tratando de um evento global, o cenário ideal seria uma ação conjunta entre FIA (Federação Internacional de Automobilismo), Liberty Media e organização local, mas a demora dos processos de governança acaba deixando a tarefa imediata muito mais nas mãos do responsável por cada etapa.

O GP de São Paulo iniciou ações mais efetivas em 2022 (Foto: Rodrigo Berton/Grande Prêmio)

“Você está falando de um problema que é global, então seria maravilhoso ter uma conscientização internacional e global com uma efetividade local, porque não adianta eu usar a minha força para fazer esse discurso e lá granularmente, em cada lugar, ter gente atuando de forma efetiva. Então as duas seria o melhor dos mundos”, reconhece Ana.

Addobbati confia, ainda, que lutar contra o assédio tem benefícios inclusive financeiros, já que não é preciso esperar pela cobrança de patrocinadores. E ela cita o exemplo do futebol, quando o Santos perdeu patrocinadores após anunciar a contratação de Robinho em outubro de 2020, quando o jogador já tinha sido condenado em primeira instância na Itália por estupro.

Na época, a Cervejaria Brahma, da Ambev, emitiu uma nota oficial explicando que o contrato com o Santos Futebol Clube tinha sido encerrado em 1º de outubro, mas avisando que “não discutiremos sobre a renovação enquanto o jogador tiver contrato com o clube”.

Vários outros patrocinadores pressionaram, o que levou a equipe do litoral de São Paulo a suspender o contrato do jogador em 16 de outubro. Em 10 de dezembro daquele mesmo, a justiça da Itália condenou Robinho em segunda instância, a nove anos de prisão pelo estupro coletivo de uma jovem albanesa de 23 anos.

Em 19 de janeiro de 2022, a Corte de Cassação de Roma, última instância da justiça italiana, negou recurso da defesa e manteve a condenação. No início do mês, o Brasil negou a extradição de Robinho, já que o artigo 5 da Constituição do Brasil não permite a extradição de cidadãos brasileiros. A Itália ainda pode solicitar que ele cumpra a pena em território nacional, mesmo caso de Ricardo Falco, amigo do ex-jogador e condenado pelo mesmo crime.

A voz da Livre de Assédio entende que o combate a esta prática é, também, uma responsabilidade da imprensa, já que cabe aos profissionais de comunicação darem voz às vítimas e cobrar ação dos responsáveis.

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“Cobrar, com certeza, que isso não seja normatizado. Vocês estão fazendo exatamente o que é o papel da imprensa: dar espaço para denúncia. Agora, eu acho que o próximo passo é cobrar que essa cultura mude e que os responsáveis olhem para a mulher consumidora com seus direitos preservados, não normatizem, tomem uma atitude”, declara Ana. “Depois que aconteceu o assédio, a experiência da pessoa, para dizer o mínimo, já foi atingida, a violência já aconteceu, que é o principal que a gente tem de olhar. O trauma já está ali. Então como é que a gente consegue olhar para o papel da imprensa neste lugar de — que eu acho que é seu papel aí enquanto mulher de cobrir um ambiente extremamente machista — jogar luz. Não dá para normatizar. Essa conversa já teve início em algum grau no futebol e tem de ter também na Fórmula 1, entendeu?”, cobra.

Questionada sobre qual papel cabe aos homens no combate ao assédio, Ana, que reconhece que alguns deles também são vítimas, ainda que em menor número, respondeu ao GRANDE PRÊMIO: “Em primeiro lugar, não ser um assediador. Olhar, revisitar o seu comportamento. Dois, o papel de denunciar se viu. E, se tiver a possibilidade de proteger uma mulher, proteger.

“Aos de hoje, o convite: como continuar frequentando esse tipo de espaço e ser um agente de mudança? Não só não fazendo o assédio, como também protegendo as mulheres e não sendo conivente.”

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