Conta-giro: Legado de Rodríguez vai além de filme: ‘Gonchi’ inspira fundação e nova geração do esporte uruguaio

A trágica e precoce morte de Gonzalo Rodríguez em Laguna Seca a bordo de um carro da Penske, há 16 anos, não foi necessariamente o fim. Seu legado, de uma forma ou de outra, segue vivo. Seja impulsionado pela irmã, Nani Rodríguez, à frente da fundação que trabalha em prol da segurança das crianças nas estradas, seja com novos talentos como Santi Urrutia, que mantém em evidência a bandeira celeste nas categorias de base. Exatamente como ‘Gonchi’ fez no fim dos anos 1990

11 de setembro de 1999. Manhã de sábado em Monterey, cidade californiana onde fica localizado o desafiador circuito de Laguna Seca, para a 17ª de 20 etapas da Cart naquela temporada. Gonzalo Rodríguez fazia sua segunda participação no certame depois de terminar o campeonato da F3000 em terceiro lugar, com direito a uma grande vitória em Mônaco. O piloto de Montevidéu, aos 28 anos, buscava se adaptar à categoria, que disputaria de forma integral no ano seguinte, uma vez que tinha contrato assinado com a equipe Patrick. Mas não houve tempo. Uma falha no acelerador do Penske-Mercedes #3 impediu Gonzalo de frear na entrada da curva Saca Rolha. Rodríguez perdeu o controle do bólido, bateu no muro e decolou. Com o impacto, o uruguaio morreu instantaneamente, encerrando uma carreira promissora.

12 de setembro de 2015. 16 anos e um dia depois da trágica e precoce morte de Gonzalo, Santiago Urrutia escreveu um roteiro de cinema na mesma Laguna Seca que foi palco do passamento do seu maior ídolo. Aos 19 anos, Santi era apenas uma criança e não teve a chance de ver de perto ‘Gonchi’ em ação, mas assim como muitos brasileiros ainda se inspiram em Ayrton Senna, Urrutia tem em Rodríguez sua principal referência no esporte. E quis o destino que fosse justamente o circuito de Laguna Seca o lugar onde o jovem piloto conquistasse o título da Pro Mazda, colocando no topo do pódio a bandeira celeste que, em 1999, foi hasteada a meio-pau.

Uma conquista que, se não ameniza a dor pela morte de Gonzalo Rodríguez, mostra ao Uruguai, à América Latina e ao mundo do esporte que seu legado está mais vivo do que nunca.Mas ‘Gonchi’, como era carinhosamente chamado, não inspira somente os jovens pilotos uruguaios que querem seguir seus passos, seja no automobilismo norte-americano ou mesmo na Europa. Muitas crianças, mesmo aquelas que não têm como empreender uma carreira no esporte a motor, têm em Gonzalo uma grande referência de sucesso nas pistas e na vida.

O GRANDE PRÊMIO conversou com Maria Fernanda ‘Nani’ Rodríguez, irmã de Gonzalo. Foi por suas mãos que, pouco depois de o piloto perder a vida em Laguna Seca, buscou manter sua chama acesa por meio da Fundação Gonzalo Rodríguez, com sede em Montevidéu. Nani acompanhou os passos da carreira do irmão, foi à Europa, permitiu-se sonhar, comemorou vitórias incríveis como em Spa, Nürburgring e Mônaco, e chorou pelo adeus precoce a ‘Gonchi’.

O legado de Gonzalo Rodríguez continua vivo. E sua irmã, Nani, ajuda e muito nesta missão (Arquivo Nani Rodríguez/Sutton Images)

Entretanto, era preciso seguir em frente. Sempre é. E Nani procurou, de alguma forma, dar sequência ao trabalho que provavelmente seu irmão faria. Nascia a Fundação Gonzalo Rodríguez, com participação destacada sobretudo no Uruguai e na América Latina, mas registrada também nos Estados Unidos e na Inglaterra. A entidade nasceu com o propósito inicial de melhorar a qualidade de vida das crianças e jovens uruguaios, desenvolvendo programas próprios que utilizam o esporte como forma de educação, desenvolvimento e inclusão social.

“Começamos pouco depois da morte de Gonzalo. Primeiramente, focamos em promover o esporte como uma plataforma de educação para a população no Uruguai. Naquele momento, apenas 8% das escolas públicas tinham a educação física em sua grade, e trabalhamos nisso por muitos anos e conseguimos ajudar a promover uma lei na qual o esporte tornava-se algo obrigatório em todas as escolas primárias públicas do Uruguai. Esta foi uma grande vitória”, disse Rodríguez.

A lei sobre a qual Nani se refere é a de número 18.213, resultado de um projeto chamado ‘Esporte para Todos’, que foi declarado de Interesse Nacional pela Presidência da República Oriental do Uruguai. O êxito de tal projeto empreendido pela Fundação Gonzalo Rodríguez foi o responsável pela lei, que oferece uma alternativa real aos jovens uruguaios: o esporte como grande plataforma educacional.

Foi o primeiro passo de um desafio muito maior, como conta Nani. “E depois disso, passamos a focar em algo mais complicado, a principal causa de morte entre as crianças no Uruguai. Então, com a ajuda de Charlie Whiting, diretor da FIA, contei que queria ajudar nesta causa no nosso país, e contei que as empresas não estavam dispostas a ajudar muito, uma vez que o Uruguai é pequeno perto do Brasil, Argentina ou México, por exemplo. E conversando com Whiting no GP da Espanha, em Barcelona, há dez anos, perguntei se ele poderia ajudar a desenvolver um plano-piloto para melhorar a segurança das crianças no trânsito no Uruguai e exportar isso para toda a América Latina.”

Lançamento do projeto Latin NCAP de segurança no trânsito, empreendido pela Fundação Gonzalo Rodríguez (Foto: Fundação Gonzalo Rodríguez)

“E essa ideia foi transmitida ao então presidente da FIA, Max Mosley, que se mostrou muito entusiasmado com o projeto. De Barcelona, fomos até Londres para nos reunir e começar de fato esse trabalho”, explicou. A partir daí, foi desenvolvido um projeto chamado EDU-CAR, cujo objetivo é “proteger os meninos de hoje e educá-los como os motoristas do amanhã”. Trata-se de algo desenvolvido com o foco em longo prazo, focado em segurança vital para as crianças no trânsito, algo que depois foi expandido para a América Latina e o Caribe.

Assim, foram desenvolvidas normas técnicas e de segurança, como a adoção e padronização das cadeiras de segurança usadas pelas crianças no banco traseiro dos carros ou em transportes escolares, minimizando ao máximo os riscos em um acidente de trânsito. Tudo com base em estudos científicos, objetivos e independentes. Projeto empreendido pela Fundação Gonzalo Rodríguez e com apoio da Fundação FIA.

É difícil para Nani Rodríguez mensurar quantas vidas foram salvas desde quando começaram os trabalhos na Fundação. Mas é inegável que o sentimento de dever cumprido e, principalmente, de ver o legado do irmão garantir o sorriso de outras tantas famílias por toda a América Latina é ameniza uma saudade sem fim.

Ao falar do irmão, Nani não escondeu a emoção. Primeiro, ao se lembrar do que Gonzalo representou e ainda representa para o esporte e para o povo uruguaio como um todo.

Projetos da Fundação Gonzalo Rodríguez ajudaram a melhorar segurança das crianças no trânsito (Foto: Fundação Gonzalo Rodríguez)

“Para nós, Gonzalo foi o piloto que chegou mais longe no automobilismo. E, além disso, as pessoas também se lembram da sua personalidade, não apenas por seu talento, mas também porque ele era uma pessoa muito alegre, muito franca e aberta aos fãs e à imprensa, e é difícil hoje que um esportista seja tão comunicativo como ele era. Meu irmão foi uma pessoa muito carismática e muito aberta. Então isso causou um impacto muito grande junto ao povo uruguaio”, recordou.

Guardadas as devidas proporções, ‘Gonchi’ é para o Uruguaio que outra figura do esporte a motor representa para o Brasil. “Quando Gonzalo morreu, com apenas 28 anos, isso foi algo que causou grande comoção, porque foi no momento em que ele estava virando profissional, a ganhar salário, a viver do automobilismo. Para nós, é como se fosse nosso Ayrton Senna, com todo o respeito que temos a Ayrton e aos brasileiros, para nós Gonzalo era alguém assim.”

QUEM FOI GONZALO RODRÍGUEZ?

Nascido em Montevidéo no dia 22 de janeiro de 1972, Gonzalo Rodríguez teve uma carreira de sucesso no kart do seu país. Mas depois de mostrar talento naquele que representa o primeiro passo no automobilismo, 'Gonchi' foi alçar voos mais altos na Europa em 1994, com 22 anos, idade até avançada para os padrões atuais. Naquele ano, o piloto disputou a F-Renault Britânica e Europeia. No ano seguinte, subiu para a F3 Inglesa, classe na qual dividiu curvas com pilotos como Helio Castroneves, Cristiano da Matta, Alex Wurz, Marc Gené e Chrsitian Horner, ele mesmo, o chefe de equipe da Red Bull.

Depois de mais um ano na categoria britânica, Gonzalo ingressou na F3000, a antecessora do que é hoje a GP2. Depois de um ano de aprendizado, sua estrela começou a brilhar em 1998, ano em que venceu duas corridas: Nürburgring e Spa-Francorchamps, terminando o campeonato num bom terceiro lugar. Em 1999, contratado pela Astromega, equipe belga que era uma espécie de Benetton Jr., o uruguaio venceu em Mônaco. Pouco depois, foi convidado pela Penske para disputar a etapa de Detroit da Cart.

O Penske-Mercedes era um carro muito diferente — e com direção bem mais dura — ao qual estava acostumado na F3000. Ainda assim, sua estreia na Cart não foi ruim: 12º lugar nas ruas de Belle Isle, disputando com um dos seus grandes amigos nas pistas, Juan Pablo Montoya. Roger Penske se impressionou com seu trabalho, mas já tinha fechado contrato com Greg Moore e Gil de Ferran para 2000. Então, Pat Patrick agiu rápido e o contratou para ser companheiro de equipe de Adrián Fernández. Era seu primeiro contrato profissional e, obviamente, Gonzalo estava muito feliz por este novo momento em sua carreira.

Mas o acidente trágico na entrada da curva Saca Rolha, durante os treinos para a etapa de Laguna Seca, meses depois de correr em Detroit, impediu a grande ascensão de 'Gonchi', que morreu aos 28 anos. Gonzalo foi, sem dúvidas, o maior expoente do automobilismo uruguaio (Foto: Arquivo Nani Rodríguez/Sutton Images)

‘Gonchi’, o Filme

Mesmo quem nasceu depois do trágico 1º de maio de 1994 acaba tendo acesso, de uma forma ou de outra, seja por meio de vídeos de corridas, documentários e livros, à história de Ayrton Senna. Trata-se de um personagem que deixou material farto e que até hoje rende alguns conteúdos inéditos, como a série em exibição pelo Canal Brasil.

No caso de Gonzalo Rodríguez, o acesso aos seus feitos, seja nas categorias de base, mesmo na antiga F3000 e sua breve participação na Indy, é um pouco mais difícil e restrito. Então, primeiro como forma de homenageá-lo, e depois para eternizar seu legado como piloto, Nani Rodríguez empreendeu todos os esforços para realizar um documentário sobre a vida, obra e morte do irmão. Assim nasceu ‘Gonchi’, o Filme, que está disponível no Netflix.

A resenha sobre a película, que contou com a participação de muita gente importante e que foi contemporânea de Gonzalo, como Christian Horner, adversário na F3 Inglesa, e mesmo Justin Wilson, que foi seu companheiro de equipe na Astromega nos tempos de F3000, pode ser lida aqui. Sobre Wilson, tragicamente morto em agosto, Nani demonstrou profunda tristeza, uma vez que conhecia bem o piloto britânico, e disse que o que aconteceu “é um claro exemplo de que o cockpit fechado poderia salvar uma vida”.

Como forma de homenagear o irmão, Nani liderou o projeto do filme 'Gonchi', em exibição no Netflix (Foto: Reprodução/Twitter)

“Eu, pessoalmente como sua irmã, tive o prazer de compartilhar sua carreira no exterior, vivemos na Europa e pude sentir e ver Gonzalo vencendo. E é difícil para os uruguaios que não estão envolvidos com o automobilismo internacional entenderem isso. Então o filme serviu para mostrar as perspectivas de muitos dos que conviveram com Gonzalo, sem esconder nada. Não se propôs a ser um filme controverso, mas sim uma história de vida que inspire e mostre o melhor do automobilismo”, destacou Nani.

Recentemente, Mark Webber, outro piloto contemporâneo de ‘Gonchi’ e que também foi um dos personagens no documentário, disse que o esporte a motor é uma família e que é preciso união em tempos difíceis. Rodríguez corrobora com a fala do piloto australiano. “Particularmente, acho que o automobilismo tem muitas coisas positivas para transmitir, e tratamos de mostrar esse lado humano dos pilotos, o respeito que existem entre eles. E mesmo em meio a um ambiente agressivo e muito competitivo, quando terminam as corridas, há um ambiente respeitoso e até de amizade, então foi isso que tratamos de mostrar e acredito que conseguimos.”

Nani também se emocionou ao contar sobre a participação do último chefe de equipe de Gonzalo no documentário.

“Roger Penske veio ao Uruguai com seu avião particular trazendo o corpo de Gonzalo. Foi um gesto de generosidade muito grande, uma vez que o governo uruguaio havia disponibilizado enviar um avião para buscar Gonzalo, mas ele disse que gostaria de fazer isso pessoalmente. Ele nos apoiou muito. E depois, quando começamos a Fundação, os patrocinadores da Penske doaram US$ 20 mil para iniciarmos o projeto. Com o passar dos anos, entendemos que Roger foi uma pessoa muito importante na vida de Gonzalo porque foi com ele que meu irmão se permitiu sonhar, e pensamos nele para o documentário.”

“Não sabia se ele poderia participar, mas enviamos várias cartas e, com a ajuda da assessora de imprensa de Gonzalo na época da Penske, uma pessoa muito humana e que sempre demonstrou cuidado e atenção por nossa família, e por meio dela conseguimos com que Roger Penske participasse do filme. Destaco também as participações e os relatos de Juan Pablo Montoya e de Helio Castroneves que, para mim, é uma joia. Então, foi muito importante ter a Penske presente no filme: não apenas por Roger Penske, mas também seus pilotos”, disse.

Inspirando novos campeões

A recente e histórica conquista de Santi Urrutia na Pro Mazda, mesmo sendo algo conquistado em uma categoria de formação, não deixa de ser algo histórico para o esporte do Uruguai. Sem contar Adrian Sutil, alemão de ascendência uruguaia, apenas três pilotos locais correram na F1: Óscar González, em uma oportunidade, Eitel Cantoni, em três GPs, e Alberto Uria com dois GPs disputados em 1956. Rodríguez, que era ligado à Benetton pela equipe Astromega na F3000, poderia ter chegado ao grid da categoria, como fizera o amigo Juan Pablo Montoya poucos anos depois, mas ‘Gonchi’ não teve tempo.

Mas campeões como Urrutia dão sequência à trajetória de Gonzalo. Santi, tão logo conquistou o título da Pro Mazda, tratou de homenagear o ‘mestre’ em uma pista de passado tão triste, mas de presente muito mais feliz.

16 anos depois, na mesma Laguna Seca marcada pela morte de 'Gonchi', Santi Urrutia fez o Uruguai sorrir (Foto: Pro Mazda)

“É muito especial para mim vencer aqui, porque é o lugar onde perdemos o maior piloto do Uruguai há 16 anos. Tenho certeza de que Gonzalo esteve aqui, acelerando comigo. Não posso explicar o quão feliz me sinto, mal posso acreditar”, vibrou Urrutia.

No outro extremo da América, Nani vibrou com o feito do seu jovem compatriota. “Incrível! Se fosse um filme de Hollywood, seria algo surreal demais. Ver Santi Urrutia correr no mesmo dia, na mesma pista onde tudo aconteceu com Gonzalo e vencer foi uma enorme casualidade. E Santi é um menino muito bom, habilidoso, tem um grande talento. Ele me disse que gostaria de pintar o capacete com metade da pintura dele e a outra metade homenageando Gonzalo, como fez Juan Pablo [Montoya] no ano em que meu irmão morreu. E ele fez isso e foi campeão.”

“São as peças que o destino nos prega. Foi estranho: por um lado, um circuito que nos traz as piores lembranças possíveis, mas, ao mesmo tempo, vimos uma grande conquista por parte de Santiago. Isso mostra que, no final, a vida segue", complementou.

Irmã e grande amiga de Gonzalo, Nani imagina como seria sua vida se ele ainda estivesse entre nós. “Com certeza, ele chegaria à F1. Mas hoje, aos 44 anos, certamente já não estaria mais competindo. Mas ele sempre me dizia que gostaria muito de correr de turismo antes de encerrar a carreira e, então, voltaria ao Uruguai depois de se aposentar. E ele gostava muito de cozinhar. Ele gostaria de ter um restaurante pequeno, com quatro ou cinco mesas, apenas para seus amigos, para que eles pudessem jogar cartas, e que Gonzalo pudesse cozinhar para todos. É um pouco do que ele tinha planejado”, contou, revelando o estilo simples de vida de ‘Gonchi’, algo que remete até mesmo ao antigo presidente Pepe Mujica.

No fim das contas, a vida é cíclica e se renova dia após dia. Mas de certa forma, Gonzalo Rodríguez segue vivo: seja nas vitórias da nova geração uruguaia nas pistas, seja com crianças e jovens salvos no trânsito, seja com o desenvolvimento de novos atletas e, sobretudo, de cidadãos.

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