Na Garagem: Jutta Kleinschmidt entra para história como primeira mulher a vencer Dakar
Um enorme feito completa 20 anos nesta quinta-feira. O Na Garagem abre a sua temporada 2021 com o resgate da grande história que levou Jutta Kleinschmidt ao topo do rali mais desafiador e importante do mundo: o Dakar, quando a prova ainda começava em Paris e era completada na capital do Senegal
21 de janeiro de 2001 foi um dia singular para o esporte a motor. Pela primeira vez na história, há exatos 20 anos, uma mulher, Jutta Kleinschmidt, alemã nascida em Colônia em 1962, conquistava o lendário Rali Dakar, quando ainda era conhecido como Paris-Dakar, depois de partir da capital francesa e cruzar boa parte da África para chegar à zona de meta final na capital do Senegal em um percurso desafiador de mais de 10 mil km de extensão. A bordo de uma Mitsubishi Pajero Evolution e ao lado do navegador, também alemão, Andreas Schulz, Jutta alcançou um feito digno de entrar para os livros de história do esporte.
No trajeto pelo Saara, Jutta teve de lidar com o forte calor durante o dia, frio intenso à noite, dias sem banho, as incertezas de trechos ameaçadores de países como Mauritânia e Mali. Foi uma vitória alcançada na raça, depois de a alemã triunfar em meio a uma disputa com dois grandes nomes do Dakar à época: Jean-Louis Schlesser e Hiroshi Masuoka.
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O Na Garagem, seção do GRANDE PRÊMIO que recorda efemérides históricas do esporte a motor, abre sua temporada 2021 contando o grande feito de Kleinschmidt. Mas é preciso voltar um pouco mais no tempo para contar porque a valente alemã tornou-se um dos grandes nomes do motociclismo e do automobilismo em todos os tempos.
Hoje com 58 anos, Jutta Kleinschmidt foi criada em Berchtesgaden, na Bavária. Formada em física e engenharia pela Isny Polytech, em 1986, a alemã começou a atuar de forma profissional na BMW, no departamento de pesquisa e desenvolvimento.
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Antes disso, quando tinha 18 anos, juntou dinheiro para comprar sua primeira motocicleta — contra a vontade dos pais —, com a qual fazia trilhas, boa parte delas na neve. Dois anos depois da formatura, justamente com uma moto BMW, em 1988, Jutta fez seu primeiro Dakar, que marcou a abertura de um novo ciclo na sua vida, de amante do esporte para uma atleta profissional.
Em entrevista exclusiva publicada no GRANDE PREMIUM, a pilota recordou como foi o início da sua carreira no Dakar sob duas rodas.
“Foi porque eu amo aventura, tecnologia e motos… Estava guiando minha moto em trilhas off-road durante minhas férias, e meus empresários me avisaram que o Dakar estava me procurando. Resolvi fazer o Dakar na minha moto, só como parte das minhas férias, sem fazer parte da corrida. Mas aquilo me fascinou tanto que decidi entrar para a corrida sozinha”, disse.
“Era muito difícil naquela época! Muitos dias, muito longo… O maior sonho era apenas terminar, mas tinha como ideia clara somente participar. Foi assim que comecei minha carreira”, relembra Jutta.
Quatro anos depois da estreia no Dakar, Kleinschmidt voltou a encarar o maior rali do mundo, que teve naquele início de 1992 o maior trecho da sua história: 12.427 km. A linha de chegada não foi na capital do Senegal. De Paris, os competidores cruzaram todo o continente africano até chegar a Cidade do Cabo, na África do Sul.
A primeira vez em que chegou ao fim de um Dakar, terminando em 23º lugar no geral nas motos, é classificada por Jutta como um dos momentos inesquecíveis como competidora do maior rali do mundo.
“Foi incrível por ter sido tão longo, o Dakar mais longo da história. Passamos por muitos países diferentes, problemas diferentes. Eu usei uma moto comum, o que era uma ideia completamente insana, mas precisava de ajuda da BMW. Então disse que usaria uma moto normal ao invés da preparada [pela fábrica]. Foi incrível porque estava começando minha carreira, e terminei [a corrida] com uma moto comum.”
Jutta fez mais um Dakar com as motos, em 1994. Daquela vez, a alemã trocou a alemã BMW pela austríaca KTM. Foi a sua última vez sob duas rodas. A partir de 1995, Kleinschmidt passou a competir de carro, tendo ao seu lado Dagmar Lohmann como navegadora.
“Depois de passar pela corrida [Dakar] algumas vezes, queria um novo desafio. Meu sonho era mudar para os carros, porque nos carros você aguenta muito mais, não é tão físico quanto as motos, é mais seguro, não é tão perigoso, e são duas pessoas. Também era mais visto, já que mais gente dirige carros do que motos. Por isso queria um novo desafio e queria mudar para os carros”, explicou.
“E isso é meio louco porque é muito mais caro. Você tem de encontrar patrocinadores para te ajudar. Precisei convencer meus patrocinadores que pagassem muito mais para algo que eu não tinha experiência. Jamais havia pilotado um carro em um rali”, recordou.
“Mas consegui. Mudei para os carros e, no fim das contas, a maior parte do meu sucesso foi nos carros”, complementou Jutta.
Não demorou para Kleinschmidt mostrar o quanto é uma pilota diferenciada. Depois de um bom 12º lugar na estreia nos carros, correndo com uma Mitsubishi Pajero, Jutta passou a competir com um Buggy desenhado por Jean-Louis Schlesser, que foi seu namorado à época — aqui no Brasil, o francês é mais reconhecido por ter sido o piloto que chocou sua Williams com Ayrton Senna no GP da Itália de 1988.
Mal sabia Jutta que teria de lutar contra o próprio Schlesser anos depois para vencer seu primeiro Dakar.
Foi com o protótipo projetado por Schlesser que Jutta escreveu sua página na história do Dakar pela primeira vez ao tornar-se a primeira mulher a vencer uma especial da prova. Aliás, foram duas especiais vencidas pela alemã naquela competição, disputada inteiramente em solo africano em 1997.
Jutta não parou mais de vencer e se consolidou como uma das principais competidoras do maior rali do mundo. Contando com o apoio da Mitsubishi da Alemanha, a pilota fez história mais uma vez. Em 1999, terminou a disputa em terceiro lugar, tendo ao seu lado a navegadora sueca Tina Thörner. Contudo, não foi a única competidora a conquistar um troféu na prova. Isso porque Leilane Neubarth, que foi copilota de André Azevedo e Tomas Tomecek na disputa dos caminhões, foi ao pódio na classificação geral na prova dos ‘brutos’ naquele ano.
Na hora certa e no lugar certo: a glória de Kleinschmidt no Dakar
A vitória, que parecia estar amadurecendo ano após ano, finalmente chegou em 2001, quando a prova teve um trajeto ‘raiz’, partindo de Paris com destino a Dacar.
Kleinschmidt, com 38 anos à época, lembra que a maior conquista da sua carreira não foi nada fácil por conta não apenas da dificuldade que o Dakar oferece por si só, mas também pelas condições de competir com os principais pilotos, dificultadas pelas limitações de recursos.
“Primeiro porque não tinha um carro de fábrica, era um carro-cliente. A Mitsubishi Alemanha me chamou e disse que poderia trabalhar comigo como cliente, mas nessa situação você não espera ganhar. Em situações assim, você tem material do ano anterior, mas não as coisas mais novas, como os pilotos de fábrica. E então, quando me vi numa posição segura na corrida, fiquei muito, muito feliz”, afirmou.
“Com aquele carro já era incrível, porque nessa situação normalmente todos os pilotos de fábrica devem estar à sua frente. Depois, de repente, Schlesser e Masuoka estavam lutando pelo primeiro lugar e cometendo erros, algo assim. Eu, como estava muito perto, estava com chances de tomar a vitória. Masuoka quebrou algo no carro e Schlesser sofreu uma punição [por atitude antidesportiva] contra Masuoka. As coisas acontecem…”
“Tive um pouco de sorte, mas é assim. Tem um ditado na Alemanha que diz que quando dois brigam, você pode ter sorte. E foi o que aconteceu. Fiquei sem conseguir acreditar no que aconteceu”, descreveu.
“Não estava tão perto antes do penúltimo dia, porque Masuoka perdeu muito tempo consertando o carro. Abri o último dia um pouco mais de 2min à frente, mas ainda tinha de fazer o que era necessário: era uma etapa curta, mas dura. Foi a especial mais difícil da minha vida porque sabia que, se errasse qualquer coisa, ia jogar a vitória no lixo. Essa corrida teve muitos momentos de emoção e deixou uma grande marca na minha vida”, contou Jutta.
Apesar de o Dakar daquele 2001 ter finalizado em 21 de janeiro, Jutta só pôde comemorar a vitória de forma definitiva um mês e meio depois, em 7 de março. Tudo por conta do recurso apresentado pelo ex-namorado. Schlesser foi punido em uma hora pela organização da prova por não ter respeitado a ordem de largada da penúltima etapa, partindo mais cedo que o previsto e à frente de Masuoka. Mas o francês teve o recurso rejeitado pela FIA (Federação Internacional de Automobilismo), que confirmou a vitória de Kleinschmidt e o navegador Andreas Schulz.
Vencer o maior rali do mundo tornou Jutta não apenas um ícone feminino do esporte a motor, mas também um símbolo de sucesso do automobilismo na Alemanha.
“Tudo muda. Você fica muito mais conhecida. Toda a imprensa quer falar contigo e te ver. É fantástico, porque, de repente, muitas portas se abrem para você. Foi também o motivo pelo qual entrei no esporte. Hoje, quando você pensa em rali na Alemanha, é claro que lembra da primeira vencedora. Aí você tem acesso, pode mudar certas coisas”, afirmou.
Jutta alcançou alguns grandes feitos depois de ter vencido o Paris-Dakar de 2001. Contratada pela Volkswagen em 2004, a pilota foi escolhida para ajudar a desenvolver o Race Touareg, que virou um símbolo de excelência da marca alemã e que alcançou três vitórias consecutivas entre 2009 e 2011 (com Giniel de Villiers, Carlos Sainz e Nasser Al-Attiyah, respectivamente), quando a prova passou a ser disputada na América do Sul. Em 2005, Kleinschmidt e Fabrizia Pons terminaram em terceiro lugar, o primeiro top-3 alcançado por uma dupla competindo com um carro movido a diesel no Dakar. Em 2007, Jutta se despediu, ao menos como competidora, do maior rali do mundo.
Presidente da Comissão de Rali Cross-Country da FIA, Kleinschmidt jamais deixou as trilhas dos grandes ralis do mundo. A alemã é figurinha carimbada do Dakar e esteve na semana passada acompanhando a caravana da prova na Arábia Saudita. Em novembro, a ex-pilota esteve no Brasil e seguiu com a caravana do Sertões, que busca da FIA a oportunidade de voltar a sediar uma etapa do Mundial no próximo ano.
20 anos depois de alcançar a glória e escrever seu nome nos livros de história do automobilismo, a única mulher campeã do Rali Dakar segue trabalhando ativamente em prol do esporte a motor.
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