Hamilton vence, convence e promove confronto incomum: Fórmula 1 x realidade

Após fim de semana impecável na Estíria, Lewis Hamilton cerrou os punhos e chamou as equipes da Fórmula 1 a entrarem na roda de manifestações e medidas para que o Mundial se torne mais diverso. De punhos cerrados, abriu uma nova fase da inserção da F1 no mundo real

Se você acompanhou o fim de semana do GP da Estíria sabe bem o que aconteceu – e ficou impressionado – a partir do momento em que as preocupações com o clima deram lugar às palavras da pista, o resultado foi muito óbvio. O que Lewis Hamilton fez no sábado foi quase indecente em padrões esportivos. Na chuva, liderou os três trechos e colocou 1s2 para o segundo colocado no momento final. No domingo, enquanto a corrida atrás dele comia solta, caminhava com tranquilidade admirável. Parecia desfilar por uma demonstração por Campos Elísios.

Então, na pista, foi o Hamilton dos últimos anos: imperante, sobrevoando a pista num nível tão diferente, e de tal maneira superior que parecia um safety-car. O marco do qual o restante do grid era obrigado a observar de trás, calmamente.

Lewis agora tem 85 vitórias, número incrível e que o coloca apenas seis atrás do recorde de Michael Schumacher que um dia pareceu inatingível. São também 89 pole-positions, o que já significa uma frente acima de 20. Com as mãos numa Mercedes que desponta dominante, apontar a realidade de que irá alcançar os recordes de títulos e vitórias do alemão parece, a essa altura, mera formalidade.

Elogios ao piloto Hamilton, hoje em dia, sempre dão a sensação de obviedade. Estou chovendo no molhado se disser que Hamilton foi brilhante? E disser que é um dos maiores de todos? Se disser que talvez seja o maior? Que deu as cartas e fez outros 19 pilotos disputarem uma prova de crianças enquanto o adulto fazia o que adultos fazem quando praticam esportes no meio de crianças? Nada disso é absurdo, claro, mas levantar esses pontos parece ser sempre como caminhar numa trilha tão infestada de gente que mal dá para respirar.

Assim são os gênios. Elogiá-los em plano tempo histórico em que a demonstração de sua genialidade é desfilada em frente aos olhos do público acaba sendo sempre replicar o óbvio e abraçar alguns clichês.

Mas Hamilton, cada dia mais, tem camadas diferentes que apenas um grande piloto tem. E se você é leitor do GRANDE PRÊMIO sabe bem do que falamos. A compreensão social e o senso de responsabilidade de Hamilton assumiu para si nos últimos tempos é admirável e, mais do que isso, a urgência para agir, essa disparada sobretudo neste ano, é quase invejável.

O que vocês sabem, o que é notícia de outros dias, não repetiremos aos detalhes. Deixemos os clichês para quando estivermos nos deliciando com o gênio das pistas. O gigante de fora delas é maior que isso e clichês não lhe cabem tão bem.

Sim, temos de recordar alguns pontos. A posição de conscientização na luta contra o coronavírus, por exemplo, e a liderança espontânea que assumiu não apenas na Fórmula 1, mas no esporte internacional, a partir do momento em que as manifestações em revolta ao brutal assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, ganharam o mundo. Nota do jornalista: pandemia e a eclosão das manifestações antirracistas têm mais a ver do que pode parecer num primeiro olhar. Mas isso é conversa para outro texto e momento mais oportuno.

Hamilton deu a cara a tapa, foi às ruas, criou a Comissão Hamilton para aumentar o espaço de pessoas provenientes de minorias sociais no esporte a motor, seja na pilotagem, engenharia ou onde mais for necessário. A afronta à ignorância orgulhosa de Bernie Ecclestone foi importante também, bem como a forma que chamou abertamente o restante de seus pares da F1 à baila para que entrassem no circuito, falassem do assunto e mostrassem que a F1 compreende o problema social em voga.

Pois que a F1 respondeu. Criou o #WeRaceAsOne, Daniel Ricciardo se manifestou, Sebastian Vettel apareceu para correr com o ‘Black Lives Matter’ no capacete e recebeu palavras de enorme carinho do hexacampeão. A rivalidade das pistas é um grão de areia perto das questões violentas que o mundo impõe, afinal.

A Mercedes no pódio da GP da Estíria: Lewis Hamilton e Stephane Travers

Mas tende a fazer mais. A reboque de Hamilton, a Mercedes foi a equipe que ele precisava, a empregadora de alcance global que entendeu o motivo de ter de entrar na valsa. Assim fez. O apoio a Hamilton, o carro preto – na contramão da história prateada – e o fato de enviar a engenheira química Stephanie Travers, nascida no Zimbábue, para representar a equipe e se tornar a primeira mulher preta e africana a receber troféu no pódio da Fórmula 1, neste GP da Estíria, são partes de um todo que é maior. Trabalhar para mudar realidades simplesmente não é uma possibilidade sem que entenda o problema e mostre sinais claros, de representatividade, de que a mudança é sinônimo também de vitória.

Como é necessário prosear o óbvio em tempos obscuros como os atuais, desenhamos: não, Travers, ao ir ao pódio, não desbancou as mazelas do mundo. Absolutamente ninguém defendeu essa tese. É um ponto de exclamação para o mundo. Mulheres pretas e africanas no Zimbábue, em Gana ou no Niger podem ter ouvido o papo furado de que todas as pessoas são iguais e podem fazer o que quiserem se forem esforçadas o bastante, mas em 70 anos e mais de 1.000 GPs toda a força de vontade do mundo não tinha colocado uma representante sua no pódio da Fórmula 1.

A mudança desejada, afinal, não é somente sobre dar espaço nas baias de escritório por mundo. É sobre dar espaço para brilhar e estender o tapete vermelho para que se destaquem. Lembremos: no Brasil, por exemplo, mulheres pretas com curso superior recebem apenas 44% dos salários de homens brancos nas mesmas condições, segundo levantamento do IBGE. Menos da metade! Não é ficção, não é um jogo de tabuleiro que se pode tampar e colocar de volta nos confins de uma gaveta. É um assunto sério que precisa surgir em plataformas globais sempre que possível. Querer que tudo isso simplesmente seja escondido, saia de cena e tenha repercussão furtada é pequeno demais para merecer dois dedos de prosa.

Depois de chamar os pilotos, que resolveram dar as caras – ao menos parcialmente -, vestiram camisetas pedindo o fim do racismo e 14 dos 20 se ajoelharam perante a audiência global, agora foi a hora de ir adiante. E as equipes? Se a Mercedes se manifesta e se põe ao lado de Lewis, pouco mais se ouviu. O hexacampeão falou sobre isso depois da primeira vitória do ano.

“A Fórmula 1 deu um passo à frente mesmo, mas absolutamente dá para fazer mais. É ótimo ver a F1 falar sobre acabar com o racismo e é incrível ver a Mercedes fazer o mesmo, mas nenhuma outra equipe fez qualquer coisa. Falei sobre isso numa chamada de vídeo”, disse.

“Vimos mecânicos da Red Bull ajoelhando, o que acho ótimo, mas publicamente, como negócios e times, se olharmos para a Ferrari, que tem milhares de funcionários, não vi nenhum movimento. Não ouvi a Ferrari assumir responsabilidade e dizer o que vai fazer no futuro”, destacou.

“Precisamos que as equipes façam isso. Precisamos que a FIA e a F1 liderem mais, e creio que nesses cenários podiam dizer a todos ‘oi, pessoal, todos nós, juntos, precisamos lutar por isso para que melhoremos'”, falou.

Para ser honesto, uma equipe mais se manifestou. A McLaren, por meio do chefe Andreas Seidl, divulgou que apenas 3% dos seus quadros são ocupados por pessoas com origens de grupos minoritários e, por isso, há uma iniciativa em curso para otimizar métodos de contratação e promoção e tornar a McLaren mais diversa. Mas só, e é pouco.

O ponto com relação à FIA e F1 é interessante. Embora tenha criado seu próprio movimento, a F1 definitivamente pode fazer mais no trabalho de puxar equipes para dentro da espiral de mudança e incluir algumas delas em medidas de governança. A FIA, então, tem muito mais de onde tirar. A potência da campanha pela segurança no trânsito, queridinha do presidente de Jean Todt, é prova clamorosa.

“Acho que muita gente não entende qual é o problema. Algumas pessoas negam que haja um problema”, seguiu. “E esse é o motivo pelo qual eu, pessoalmente, armei a comissão. Todo mundo pode ter sua opinião, mas eu quero chegar na raiz disso para que, quando a gente coloque dinheiro em alguma coisa, saibamos que está indo direto para o núcleo da coisa. Essa é a meta”, finalizou.

Mais uma vez, correto. Aliás, o fato de que ainda se vê tanta gente virando as costas, fazendo de morto para o problema é traço que não fica velho. É constante de uma gente que pode se dar ao luxo e está acostumada a fechar os olhos tempos o bastante para o assunto arrefecer. Virar as costas e protestar ao vento que estão envenenando seu passatempo tentando diminuir, entre outras coisas, pobreza e morte, é um luxo para poucos. Infelizmente, poucos esses que encontram representatividade perigosa nos setores mais influentes do esporte e da vida.

Hamilton ergue o punho cerrado no pódio do GP da Estíria

Hamilton jogou a bola para as equipes, que certamente terão ao menos que responder sobre isso em alguns dias, quando a Fórmula 1 chegar à Hungria. O que dizer? Como responder? A tentativa de arrastar corporações grandes demais para quebrar, como a Ferrari, para o salão terá frutos. Resta saber quais.

“Mas como você pode ter certeza disso?”, pode questionar você, leitor. E respondemos: porque é Lewis Hamilton. É a Fórmula 1 dele, o mundo dele. É o mais perto de grande demais para quebrar que pode ser atribuído a um piloto provavelmente na história, porque Hamilton é o elemento de ligação entre a F1 e a realidade. Mais que isso: ao colocar as duas lado a lado, força um combate natural.

F1 e sua gente não estão acostumados à realidade e seu povo. Os delírios de grandeza são grande parte da mitologia, afinal.

Agora tocou os pés no chão, porque o mundo, embora não pareça, evolui e os novos tempos e gerações trazem consigo a modernidade, mas ainda carregam também as idiossincrasias dos mais antigos, com suas negligências e arrogâncias.

É um combate em curso não somente por ter sido forçado goela a dentro por Hamilton ou quem quer que seja. Trata-se de batalha interna para entender, convencer e abraçar a luta antirracista, a briga por inclusão. Hamilton é o catalisador que faz questão de juntar os fatos e acelerar processos.

A briga é contínua e seguirá sendo travada. Para isso, Lewis forçou mais um passo de uma F1 que, hoje, ele ensina a andar. E de pé, de punhos cerrados e erguidos no pódio que celebra mais um momento de glória, Hamilton tem muito mais a mostrar.

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