Liberty Media crava jackpot e conquista sucesso onde F1 fracassou por décadas: EUA

Após uma geração de decepção, a Fórmula 1 finalmente aconteceu nos Estados Unidos. E o crédito precisa ir onde é devido: Liberty Media, que entendeu o papel do entretenimento no mundo atual

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O sucesso da Fórmula 1 nos Estados Unidos é um desejo muito antigo, praticamente ancião da categoria e da federação que a regula, a FIA. Durante décadas, até gerações, o país se apresentava como um mistério, um túnel sem iluminação que se fazia labirinto e os forasteiros europeus acabavam perdidos e desesperados, revoltados e expulsos por desejo dos locais ou num exílio autoimposto por razões de rancor e incapacidade generalizada de encontrar saídas. Os tempos são outros, porém. O Liberty Media assumiu a Fórmula 1 meia década atrás com um desejo muito mais claro que todos os outros: ganhar muito dinheiro. Mas o segundo desejo mais claro que todos os outros era o sucesso nos Estados Unidos. Que o crédito vá onde é devido: deu certo.

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Já que o assunto é popularidade, TV e Estados Unidos, é justo tratar de um exemplo que junte todas estas linhas. Faz com que este escriba se recorde de uma série de TV de enorme sucesso nos anos 1990: a comédia de situação ‘Mad About You’, que retratava a vida conjugal de um casal de pessoas absolutamente normais em Nova York. Uma das raras sitcoms que envelheceram como vinho, muito premiada e que transformou Helen Hunt numa estrela, tinha em Paul Reiser o outro protagonista e criador do programa. Reiser, certa vez, quando questionado sobre como descreveria a série, teve uma sacada que considero particularmente muito inteligente. “Sabe nos filmes quando um casal está numa festa, entra num táxi e a imagem corta para os dois no trabalho no dia seguinte? Nossa série é sobre o diálogo que acontece dentro do táxi”, respondeu.

A explicação de Reiser é também um paralelo para a história longa e problemática da Fórmula 1 nos Estados Unidos. O Mundial conhecia os personagens e tinha uma visão final, a do sucesso no maior mercado do Ocidente. Mas como tornar interessante o que acontecia dentro do táxi? Era a questão que ressoava, voltava e nunca terminava respondida, no melhor estilo ‘Show do Milhão’, ‘Jeopardy’ ou algum outro programa de perguntas feito por um apresentador de cabelo caprichado no gel, microfone de lapela e cartão informativo nas mãos.

Como a história geralmente informa, a chegada do Liberty Media e sua clareza quando a tarefa de fazer a Fórmula 1 acontecer nos EUA não mexeu muito com a expectativa do público no restante do mundo. Se até hoje todo mundo fracassou na invasão da Rússia, por que achar que o novo general vai plantar a bandeira por lá? E daí que o Liberty é americano e tem seus americanos em funções-chave? Não dá para ser feito, a história mostrou.

MAX VERSTAPPEN; GP DOS EUA; FÓRMULA 1; AUSTIN; CIRCUITO DAS AMÉRICAS;
Max Verstappen no Circuito das Américas: vitória na frente de muita gente (Foto: Darron Cummings – Pool/Getty Images/Red Bull Content Pool)
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Acontece que a história é informativa, mas não é totalitária. Muito porque o mundo muda e, com ele, mudam os parâmetros e as possibilidades. Talvez no mundo dos anos 2000, tão cedo quanto isso, a munição da qual a Fórmula 1 precisava não existisse. O leque de opções se esgarçou ou foi esgarçado, uma das duas coisas aconteceu, mas o importante é que aumentou por forças da obra ou por força do tempo. O Liberty Media fez valer a posição de poder na hora certa e no lugar certo, capitalizou e conquistou o terreno impossível.

Uma arma importante que talvez não estivesse disponível há alguns anos é o ‘x’ mais óbvio dessa equação: ‘Drive to Survive’. Não que as séries documentais tenham sido inventadas nos últimos anos, mas é evidente que se espalharam e popularizaram desde o abundante sucesso de ‘OJ: Made in America’, que acabou ganhando o Oscar de Melhor Documentário em 2017. De qualquer forma, fosse feito antes dos tempos do streaming e da TV ‘on demand’, quem daria um espaço especial para algo tão grande sobre Fórmula 1 na TV dos Estados Unidos? Sucesso chama sucesso, e a verdade é que o sucesso não estava lá. Entra a Netflix e o streaming, com o mercado internacional e o investimento feito para todo mundo. ‘Drive to Survive’ movimenta muito dinheiro, pessoal e tempo, então surgiu como um dos principais produtos da casa e promovido pelo mundo com o mesmo afinco. Jackpot!

Não há surpresa alguma que a terra dos reality shows comprou os embates, as rivalidades, rixas e perigos de uma temporada da Fórmula 1. Pouco importa se o fascinado de uma vida inteira crê que a história contada naquele produto premium se dissocia da realidade e fabrica narrativas com o fim da dramaturgia bem-sucedida. Não faz diferença alguma se Max Verstappen ou Carlos Sainz estão incomodados, porque o caminho de como fazer o programa está pavimentado e se tornou algo do qual as equipes e a própria categoria não podem abrir mão.

“Não sabia nada da Fórmula 1 tirando Lewis Hamilton até mês passado. Agora eu estou aqui considerando o que é maior: o amor de Christian Horner por Max Verstappen ou seu ódio por Toto Wolff. Também estou extremamente interessado no carro de 2022 e as suas implicações de downforce”, escreveu no Twitter, em julho passado, um homem chamado JJ Watt, que vem a ser um jogador veterano de futebol americano. Watt é um nome grande por lá, eleito três vezes o melhor defensor do ano na NFL e um futuro rol da fama.

Sim, ‘Drive to Survive’ pode aparentar algo muito especial e diferente no ramo dos esportes, mas para um espectador desavisado que nada ou pouco conhece do esporte, a construção é a de um reality show normal. É um fascínio compreensivo, mas que depende de um acesso que Bernie Ecclestone jamais daria. Quem conhece bem da história do antigo supremo da F1 está bem ciente de que limpar o paddock e limitar o acesso aos personagens do jogo era mais importante que os Estados Unidos para Bernie.

“As entrevistas de Christian Horner são muito semelhantes às que acontecem em ‘The Bachelor’ e, especificamente ‘The Bachelorette’ [dois realities idênticos em que uma pessoa solteira tem de encontrar um par em meio a uma dúzia de pretendentes, mas Bachelorette conta com uma solteira como protagonista e homens de pretendentes]. Em ‘The Bachelorette’, os homens ficam boladinhos igual a Christian Horner quando ele se irrita com Toto Wolff. É excelente”, argumentou a fã Mallory McFall ao site estadunidense The Athletic.

O fato das pessoas terem ficado presas em casa ao longo da pandemia do novo coronavírus, a despeito de toda a desgraça humana, fez com que tivesse que arrumar maneiras de passar o tempo durante longos e longos meses. ‘Drive to Survive’ aproveitou muito a situação.

DRIVE TO SURVIVE; QUARTA TEMPORADA; GRANDE PRÊMIO;
A Fórmula 1 confirmou a quarta temporada de ‘Drive to Survive’ na Netflix. Grande acerto do Liberty Media (Foto: F1/Twitter)

“A Netflix não fez mal, certo? Não tem como quantificar isso, mas acho que todos concordamos que certamente ajudou. Trouxe para perto um fã mais casual que provavelmente nem era um fã de Fórmula 1. Vejo pessoas postando nas mídias sociais, atletas e outros, dizendo ‘eu não era um fã de Fórmula 1, mas agora estou engajado e não posso esperar para assistir o próximo episódio ou temporada da série da Netflix ou assistir as corridas’. E certamente nos beneficiamos com isso”, afirmou John Suchenski, diretor de programação e compras de eventos da ESPN dos Estados Unidos, em longa entrevista à revista Racer.

“Mas acho que nessa temporada em particular algumas outras ações da Fórmula 1 também fizeram a diferença. Tornaram os EUA uma prioridade. Eles veem como uma oportunidade, como obviamente nós também vemos, e investiram em peso na promoção por aqui, além do que estamos fazendo para ajudar a promover e trazer pessoas para a ESPN”, destacou.

É um ponto importante para Suchenski, porque as ações em território americano podiam existir, mas faltava o complemento principal da popularização: algo que levantasse as massas. A ESPN navegou junto desde que passou a deter os direitos de transmissão em 2018.

“Fizemos parcerias com eles em algumas atividades nesta temporada. Eles fecharam eventos VIP em Los Angeles e Miami. Obviamente a notícia sobre Miami que foi anunciada mais cedo este ano foi outro ponto positivo e outro sinal de que estão fazendo dos EUA uma prioridade. Então fizemos parceria com eles por mais exposição. Fizemos algo parecido em Austin – não uma festa VIP, mas dois anos atrás fizemos um evento na cidade de Austin com a Fórmula 1. Estamos tentando fazer a mesma coisa esse ano. Então acho que essas coisas, nesse ano em particular, contribuíram em parte para o crescimento e o sucesso que estamos vendo”, seguiu Suchenski.

Demonstrações em Los Angeles e Miami nos últimos tempos trouxeram públicos enormes para atividades triviais como uma volta na cidade. A questão é que o crescimento tem sido tão borbulhante por lá que tudo isso chama muito a atenção e atrai bastante paixão. O momento é convidativo, claro: além de tudo, a F1 fechou uma segunda corrida no país, em Miami, e conversa com Las Vegas por um terceiro evento. De costa a costa, em grandes mercados.

A animação de Suchenski tem bons motivos. A Racer destaca que a audiência da ESPN para a temporada 2021 da Fórmula 1 tem sido de uma média de 946 mil por corrida – e aqui, considere, as corridas que começam às 9h no horário de Brasília largam, na realidade, às 6h no horário do Oeste dos Estados Unidos, inclusive em Austin e Las Vegas. É um aumento de 56% para a estranha temporada de 2020 e de 41% para o campeonato de 2019. Os GPs da França e da Inglaterra ultrapassaram mais de 1 milhão de espectadores de média no momento da exibição, com a corrida francesa se tornando a segunda maior audiência de uma corrida de F1 na TV a cabo dos Estados Unidos em todos os tempos – a primeira é, por incrível que pareça, o primeiro GP do Brasil sem Ayrton Senna, em 1995, uma época em que as pessoas assistiam muito mais televisão que atualmente.

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“Também estamos nos certificando de que estamos cobrindo na ESPN.com e no aplicativo da ESPN. Estamos contando histórias com nossos programas de informações, como o SportsCenter. Indo para Austin, cruzamos com o pessoal preparando os carros na Hollywood Boulevard para o ‘Jimmy Kimmel Live’ [talk show noturno extremamente popular da ABC, o canal aberto da Disney]. Então continuamos trabalhando com nossos parceiros da F1 nesse tipo de coisa que, no das contas, alcança uma base de fãs mais abrangente do que aqueles que somente assistem corridas. Ainda chama essas pessoas para que experimentem a grande cobertura que nós fazemos”, continuou. Neste ano, a ESPN tem usado a transmissão inglesa da Sky Sports e, no GP dos EUA, a transmissão foi para a ABC, na TV aberta.

O trabalho tem sido feito para manter a Fórmula 1 durante o ano inteiro na psique do público dos Estados Unidos. Sim, os pilotos disputaram um torneio de arremessos livres no Circuito das Américas e tinham ao lado deles quatro campeões já aposentados da NBA: Dikembe Mutombo, Chris Bosh, Fabrício Oberto e Sean Elliott. Mas isso foi em território da F1. Exatamente uma semana antes da corrida, George Russell e Alexander Albon estavam todo paramentados de Miami Dolphins no Tottenham Hotspur Stadium, em Londres, para o jogo internacional da NFL entre Dolphins e Jacksonville Jaguars.

Carey teve papel importante no trabalho do Liberty nos EUA (Foto: Red Bull Content Pool/Getty Images)

Jogo que talvez ou talvez não – e possivelmente não – posicionado no coração da F1 dias antes do evento nos Estados Unidos num confronto do esporte mais popular daquele país. O Miami Dolphins, não por coincidência, é o time umbilicalmente ligado ao GP de Miami que estreia no ano que vem. O promotor da prova é Stephen Ross, dono da franquia de Miami, e a pista vai funcionar ao redor da casa da equipe, o Hard Rock Stadium.

Apesar de todos os defeitos claros e o detestável lóbi pela destruição da Floresta do Camboatá, a participação de Chase Carey à frente da F1 entre 2017 e 2020 foi fundamental para este sucesso. Carey era executivo dos estúdios FOX, um homem do cinema e que entendia entretenimento. E foi assim que a F1 de vez aos Estados Unidos: como entretenimento. Claro que um campeonato espetacular como o de 2021 e personagens distintos como Lewis Hamilton e Max Verstappen, Christian Horner e Toto Wolff, são fundamentais para construir uma base que faça o interessado de primeira viagem ficar, mas foi o entretenimento que os trouxe. Foi o entretenimento que superou a barreira.

Sim, Indianápolis teve casa cheia para entender a F1 em meados dos anos 2000, nos anos Michael Schumacher, mas a plateia teve uma mudança fundamental de lá para cá: saiu de um grupo de curiosos para um grupo de fãs deste esporte. Os quase 400 mil espectadores que passaram pelo Circuito das Américas no fim de semana passado foi um grupo composto muito mais por gente interessada nas brigas da pista, do paddock e no downforce dos carros de 2022 que no churrasco do estacionamento. Negar a mudança é impossível.

A construção dos gladiadores que arriscam à vida a cada curva pode ter construído o esporte há um século, mas é o entretenimento que vai mantê-lo no topo nos anos 2020.

F1: VERSTAPPEN SEGURA HAMILTON NO BRAÇO, VENCE NOS EUA E DÁ PASSO PARA TÍTULO | Paddock GP #262
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