Mulheres ainda sofrem para viver a F1 em Interlagos. Organização tenta solução

A edição 2022 do GP de São Paulo voltou a registrar casos de assédio e importunação a mulheres nas arquibancadas. A organização da prova tentou medidas novas para combater esses episódios, mas os relatos recebidos pelo GRANDE PRÊMIO reforçam a ideia de que uma solução definitiva ainda está longe

“A verdade é que a arquibancada não é feita para as mulheres, não é construída para mulheres, não é planejada para receber mulheres.”

A frase é de uma leitora do GRANDE PRÊMIO e fã de Fórmula 1. Em 2022, pela primeira vez, Janaína Bezerra esteve em uma arquibancada da etapa brasileira da maior categoria do esporte a motor. O setor A de Interlagos foi o escolhido. Mas a expectativa pelo fim de semana se desfez rapidamente em comentários machistas, no racismo sofrido ainda na fila para entrar e ao testemunhar uma torcedora sofrendo assédio. Uma vez mais, mulheres foram importunadas e tratadas como objeto. O encanto de acompanhar o GP de São Paulo deu lugar ao medo, à revolta e à insatisfação. Tudo porque alguns sentem que têm mais direito àquele espaço, que podem tudo e que nada acontece. Um ciclo perigoso e persistente.

“Neste ano, vou ver de casa, do setor S, de sofá”, escreveu ela ao GRANDE PRÊMIO. “É difícil, as músicas que os homens cantam para cada mulher que passa, que deprecia o nosso corpo…”

O relato da assistente executiva se torna também chocante — e triste — quando a faz
questionar: “Será que não estou exagerando? Fico pensando nisso”.

Certamente, não. Ao longo dos meses após o fim da temporada 2022, o GP recebeu diversas histórias semelhantes. Que são também muito parecidas com as que aconteceram na edição 2021 e tantas outras.

E ainda que, aparentemente, a Fórmula 1 só tenha se dado conta do que acontece entre os torcedores diante das denúncias de mulheres em GPs na Áustria e na Holanda, por exemplo, pouco foi feito por parte da categoria em si. Na verdade, somente declarações de repúdio e uma campanha que ninguém nunca mais viu. A bola parece estar nas mãos dos promotores. E o GP de São Paulo tentou agir
ao preparar algumas ações para coibir a importunação e garantir a segurança em 2022.

Entre as medidas adotadas pela organização da prova brasileira, estava a abertura de um canal de comunicação por meio do site oficial. A ideia era trabalhar como uma ouvidoria, em que as pessoas pudessem contar suas experiências, fazer críticas, reclamações ou até mesmo eventuais elogios. Uma segunda iniciativa foi mais direta e prometia ação imediata. A organização espalhou por todos os setores do autódromo equipes especializadas para o atendimento direto ao público. Esse grupo estava
uniformizado, identificado como staff.

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A equipe especializada para evitar casos de assédio foi a primeira grande medida da organização do GP de São Paulo em 2022 (Foto: Rodrigo Berton/Grande Prêmio)

Acontece que essas iniciativas não foram capazes de atingir grande parte do público. Muitos dos relatos que chegaram ao GRANDE PRÊMIO revelaram que não havia informações suficientes, locais de divulgação ou mesmo a quem recorrer. Muitas mulheres, ainda, contaram que só souberam das ações por meio de grupos de WhatsApp. E por canais de comunicação, como o GP.

Pela primeira vez em Interlagos, Bianca (nome fictício a pedido da vítima), de 21 anos, acompanhou a programação da F1 no sábado e no domingo. Junto com uma amiga, no setor G, tudo seguia bem, até que percebeu que havia um homem às suas costas, em suas palavras, “em uma posição muito específica”.

“Ignorei achando que ele queria apenas assistir e fui mais para frente da grade, mas ele ia com passos bem pequenos tentando me ‘encurralar’ na grade até eu ficar sem espaço. Minha amiga, quando percebeu, nos trocou de lugar e ficou de lado fazendo com que o braço dela ficasse em direção à barriga do senhor. Quando ele percebeu isso, mudou e foi para trás de outra moça e começou a fazer a mesma coisa. Eu escrevi no celular para ela o que estava acontecendo, enquanto minha amiga tampava a visão do homem. Acredito que o namorado dela também percebeu, e conseguimos fazê-lo parar de tentar encurralar uma de nós três”, contou a jovem.

Beatriz (nome fictício a pedido da vítima) também esteve em Interlagos pela primeira vez para acompanhar de perto a F1 em 2022, mas viveu instantes de terror durante a tradicional invasão de pista, logo após a bandeirada no domingo. Ela estava em um camarote no setor O. “Nesse momento, eu percebi que a quantidade de mulheres já tinha caído drasticamente. Mas eu queria ir. Aí, nesse empurra-empurra, já começaram a tentar encoxar, passar a mão. Mas quando liberaram, eu saí correndo para ver o pódio. Quando cheguei perto, naquela muvuca, havia muitos homens bêbados tentando se aproveitar da situação. Pegar na bunda, tentaram me puxar, teve um que se aproximou até para tentar me beijar. Aí, um outro grupo começou a gritar, mas para também se aproveitar da situação. Eu fiquei muito chateada. Estava emocionada em Interlagos, por estar assistindo à corrida, e essa hora quase estragou tudo para mim. Se eles realmente tivessem conseguido me beijar à força, acho que estragaria tudo para mim. Mas eu tentei abstrair, o que é muito difícil. E nessa hora ainda, eu estava sem bateria no celular, então não tinha como ligar ou pedir ajuda”, declarou.

Perguntada sobre as iniciativas propostas pela organização do evento, Beatriz negou ter visto qualquer tipo de sinalização ou mesmo ter conhecimento da campanha. E ela dá outro detalhe: quando a invasão de pista começou, chegou a ver um funcionário, mas disse que “foi pouco solícito em meio à confusão”.

Outras meninas também passaram por situações de importunação sexual, como Angella Santiago, de 27 anos.

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A muvuca por acompanhar pódio após a corrida (Foto: Rodrigo Berton/Grande Prêmio)

Como tantas que foram ao GP de São Paulo, Angella também esteve pela primeira vez na pista. Ela distribuía adesivos do Team LH, em apoio a Lewis Hamilton, às pessoas nas arquibancadas, quando um grupo de homens se aproximou. “Dois deles pediram os adesivos, e um começou a fazer perguntas como: ‘O que você está dando aí, hein?’, ‘O que mais você tem para dar?’. Todos os outros riram. Eu
mesma dei uma resposta para ele, disse: ‘Eu tenho uma resposta bem grossa para dar a quem é folgado’. Ele ficou meio revoltado e perguntou: ‘Quê?’.

“E eu repeti para ele o que tinha dito bem pausadamente e sai andando”, contou a jovem. “Isso foi logo de manhã, no domingo, ainda estava bem vazio. Com certeza, todo o pessoal em volta ouviu, ficou um certo constrangimento geral, mas ninguém falou nada. Engraçado que, pouco depois, dei uma entrevista no telão falando sobre a Fórmula 1 acolher mais as mulheres… Tomara”, acrescentou.

Luísa (nome fictício a pedido da vítima), 17 anos, foi mais uma vítima do desrespeito com as mulheres que ainda se esconde nas arquibancadas de Interlagos. Presente no setor A, ela foi abordada por um homem bem mais velho, bêbado, aos gritos, quando saía do banheiro sozinha. “Ele ficou perguntando meu nome, falando que era um prazer me conhecer, em um sentido de mais malícia, sabe. Não foi nada de mais, mas aquilo me incomodou demais, tanto que, no domingo, eu estava com alguém junto de mim o tempo todo para isso não acontecer mais. Foi bem chato, ainda mais que sou menor de idade, ele era bem velho”, disse a jovem.

Ao ser informada sobre o canal de atendimento pelo GRANDE PRÊMIO, Luísa disse que não sabia da existência no autódromo. A mesma resposta foi dada por Angella. “Eu nem sabia disso. Talvez se tivesse algum tipo de orientação na hora, teria procurado o staff. A gente é tão acostumada a estar sozinha nessas horas que nem pensa. Mas não lembro de ter visto [escrito] em algum lugar que, se acontecesse algo, teria esse acolhimento.”

Já Bianca tinha conhecimento da iniciativa da organização, mas não por avisos nos autódromos ou alguma campanha de conscientização comandada pela própria F1. “Eu sabia que tinha esses canais através de um grupo que estou, com a Beatriz [Rosenburg], do The Lap One, chamado Interlagos Safe, mas no evento em si, não vi nada sobre isso, nem placa, nem anúncio, nem nada, para ser sincera. Eu nem via segurança direito para pedir ajuda, caso fosse necessário, tirando no domingo, quando eles foram em peso tirar o pessoal das grades, sabe? Fora isso, só sabia do canal de denúncia por conta das redes sociais e do grupo com outras mulheres.”

Rosenburg já havia conversado com o GP sobre a campanha #RespectWomen e a malha de apoio criada nas redes sociais para que mulheres pudessem conhecer umas às outras, com o objetivo de que nenhuma estivesse só em Interlagos. Foram mais de 300 participantes, uma grande onda de solidariedade e, principalmente, sororidade que ajudou muitas a terem uma experiência única nas arquibancadas do circuito paulistano.

“Eu não tive problemas no [setor] A, tinha muita mulher ao meu redor e íamos sempre juntas ao banheiro, ou coisas do tipo. Graças aos grupos do WhatsApp, não fiquei sozinha um minuto, conheci várias meninas incríveis, e a companhia delas foi essencial para eu me sentir tranquila”, contou uma seguidora do GP no Twitter. “Foi meu primeiro ano e me senti bem segura. Estava com outras meninas, mas também conversando com homens, me trataram no maior respeito, conversei de igual para
igual sobre o esporte. Acho que o fato de estarmos em maior número e nos apoiarmos ajudou demais”, disse outra seguidora, também no Twitter.

Já para Leivanira Prieto, 2022 marcou o seu reencontro com a Fórmula 1 dez anos após ter sido vítima de assédio na primeira ida a Interlagos. O medo a bloqueou por muito tempo, e foi graças à campanha #RespectWomen que hoje, aos 39 anos, decidiu não apenas retornar ao circuito, mas atuar na linha de frente, ajudando outras mulheres.

“Eu fiquei responsável pela distribuição dos adesivos da campanha no setor R. Então, tive a chance de encontrar várias meninas do grupo Interlagos Safe. Passei os três dias com uma das meninas que tinha ido sozinha. Além disso, também montamos grupos por região de hospedagem em São Paulo e marcamos de irmos juntas até o autódromo”, contou ao GRANDE PRÊMIO.

“A rede de apoio que criamos foi muito incrível, e o quanto todo mundo se ajudou o tempo todo. Pessoas que até então nunca tinham se visto e que, de repente, estavam aguardando umas às outras nas estações de metrô e nos pontos de ônibus para que ninguém ficasse sozinha. Foi emocionante — de verdade — ver que a gente pode ir muito mais longe e ser muito mais forte quando se une, se ajuda e se apoia”, salientou.

Sobre o trabalho da organização, Leivanira disse ao GP que notou bastante a presença do staff atuando no setor R, onde ela ficou. “Eu os vi orientando o pessoal a não ocuparem as escadas, não colocar o pé nas cadeiras. Achei a equipe bem ‘linha dura’ (de um jeito positivo).”

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Os adesivos da campanha #RespectWomen, criados por Beatriz Rosenburg (Foto: Luana Marino/Grande Prêmio)

É preciso deixar claro que qualquer tipo de importunação é passível de denúncia, principalmente em um evento esportivo do porte da Fórmula 1. Os canais oficiais podem ser acionados a qualquer momento, de acordo com a lei. Além dos casos citados nessa reportagem, outro episódio também ganhou notoriedade pela violência e ameaça de agressão na edição 2022.

O caso que será relatado a seguir não se trata de um episódio de assédio sexual, porém expõe com clareza a fragilidade da abordagem do staff do GP de São Paulo na ocasião. Juliana Miyahara, 38 anos, estava acompanhada do marido, Marcelo Alonso, também 38, no setor A em 2022. Juntos pela primeira vez em Interlagos, foram vítimas de agressão apenas por Marcelo usar no sábado um boné do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). “Uns 30, 40 minutos antes de começar a sprint,
jogaram alguma coisa na minha cabeça e ficou óbvio para nós que era por causa do boné. Jogaram um pacote de comida, estava bem pesado, foi certeiro, por isso achamos que o cara não estava tão bêbado”, relatou Marcelo.

Decididos a deixarem a situação de lado para evitar confusão, Marcelo e Juliana foram surpreendidos pela ameaça: “‘Ô MST, se prepare porque quando a gente sair daqui, vai conversar’. Notei que ele estava com o pessoal de uma torcida organizada. O cara estava tentando se esconder, mas a Ju resolveu filmar, para ter o rosto dele gravado, e então resolvemos chamar a segurança.”

A partir daí, o casal se deparou com uma sequência de falhas na condução do caso. Primeiro, uma demora de cinco a dez minutos até localizar, perto da catraca do setor A, uma pessoa com a camiseta escrito ‘staff’, já que não havia ninguém nas arquibancadas. Depois, uma mulher, que se apresentou como chefe da segurança, foi até o grupo da organizada junto com outro homem para tentar ‘apaziguar’ a situação.

Em seguida, o casal foi colocado diante do agressor e questionado se tinha interesse em registrar um boletim de ocorrência. Por fim, ouviram da chefe da segurança se queriam trocar de lugar. “Rolou uma negociação, a segurança disse: ‘Vocês estão confortáveis com essa situação? Eles não incomodam mais vocês e acabou’. Só que o cara da torcida estava junto, a gente ia falar o quê? ‘Não, a gente não concorda e quer que você o expulse’. Acho que essa decisão tinha de ter sido tomada por ela, sem o nosso consentimento ou não, ficamos numa situação difícil”, frisou Juliana. “E a gente sabe que as organizadas em Interlagos se sentem donas dos lugares”, completou.

Para Juliana, a atitude da organização deixou um misto de sensações. “De uma certa forma, eles resolveram a situação. Por outro lado, imaginava outra postura, sem essa coação. A impressão que fica é que a organização só retiraria alguém se houvesse alguma coisa grave, mas para isso acontecer, não é difícil. Acho que eles precisam evitar que essas coisas aconteçam”, alertou.

+GP de São Paulo mantém canal de apoio para vítimas de assédio e importunação

Alan Adler é promotor do GP de São Paulo: a organização ampliou os sistemas de atendimento e prevenção para a edição de 2023 (Foto: Rodrigo Berton/Grande Prêmio)

A organização do GP de São Paulo também falou ao GRANDE PRÊMIO sobre as queixas e as medidas adotadas no ano passado. “A questão do assédio passa por um processo de aprendizado. Continuaremos com o canal de denúncias e o staff está orientado a dar toda assistência para casos de assédio, racismo. Quem se sentir constrangido de alguma forma deve procurar alguém do nosso staff. Temos a maior consideração pelo público feminino, que vem crescendo muito no GP de São Paulo”,
garantiu Alan Adler, promotor da etapa brasileira da Fórmula 1.

Ao ser questionado sobre as iniciativas do último ano, Adler reiterou que “os canais de denúncia funcionaram e que fazemos campanha também através de nossas redes sociais”. Ainda, o promotor revelou que, em 2023, todo o sistema será ampliado. O evento terá apoio da prefeitura de São Paulo. “Este ano teremos, ainda, um sistema para acolhimento provido pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo — Coordenação de Políticas para as Mulheres. Haverá uma sala para acolhimento para eventuais vítimas de assédio ou discriminação no autódromo, com psicóloga e assistente social. Além do staff do GP, haverá um grupo de dez pessoas da equipe de acolhimento da Secretaria circulando pelo autódromo e uma viatura no interior do circuito para esse suporte.”

“Esses colaboradores estarão circulando pelo autódromo com esta única missão.”

GRANDE PRÊMIO acompanha todas as atividades AO VIVO e EM TEMPO REAL e cobre o GP de São Paulo de Fórmula 1 ‘in loco’ com Evelyn Guimarães, Gabriel Carvalho, Gabriel Curty, João Pedro Nascimento, Luana Marino, Pedro Henrique Marum e Rodrigo Berton. Em SEGUNDA TELA, o GP acompanha a etapa com transmissões da classificação, da sprint e da corrida. Na sexta-feira, no sábado e no domingo, o BRIEFING repercute tudo que acontece na etapa brasileira.

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