Na Garagem: Barrichello deixa Schumacher passar no fim e entrega vitória na Áustria

"Hoje não, hoje não... hoje sim, hoje sim": no GP da Áustria de 2002, há exatos 20 anos, o brasileiro Rubens Barrichello recebeu ordens da Ferrari para deixar Michael Schumacher ultrapassá-lo

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Há 20 anos, a Fórmula 1 viveu um dos momentos mais polêmicos de sua história. Foi em um Dia das Mães, como o do início desta semana, que o Brasil viu Rubens Barrichello abrir passagem para Michael Schumacher nos metros finais da última volta do GP da Áustria de 2002 e entregar, de bandeja, a vitória naquela corrida.

“Vai ter música de vitória? A Ferrari não vai atrapalhar o nosso domingo? Rubens Barrichello, que começou em 1993. Rubens Barrichello, que tem 29 anos de idade. Rubens Barrichello, que completa hoje 202 corridas. Vem, Barrichello! Encosta Schumacher. Eles vão para a última curva. Hoje não, hoje não… hoje sim. Hoje, sim?! É inacreditável. Olha, é inacreditável. Não há nenhuma necessidade da Ferrari fazer isso. Se eu tivesse apostado todo o meu dinheiro, eu teria perdido”, narrou iconicamente Cleber Machado, na transmissão da TV Globo. Você, certamente, já ouviu, leu ou brincou com/sobre o trecho destacado.

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Rubens Barrichello guiando sua Ferrari naquele infame fim de semana na Áustria (Foto: Ferrari)

Naquele 12 de maio, a Fórmula 1 estava em meio a sua sexta etapa do calendário de 2002. Barrichello, no dia anterior, havia garantido a pole-position do GP austríaco, com os irmãos Schumacher em segundo e terceiro; entretanto, surpreendentemente, era Ralf quem largava à frente de Michael. 

Isso nada importou. Afinal, o ferrarista ultrapassou o piloto da Williams logo na primeira curva da corrida – enquanto isso, Barrichello permanecia na ponta, se distanciando da confusão. Pouco a pouco, Schumacher também se descolava do resto do pelotão e pronto: o cenário padrão da F1 2002 lá estava, novamente, com a Ferrari isolada à frente. 

Até a volta 24, pouquíssima ação em pista. Foi quando a BAR de Oliver Panis começou a esfumaçar – o francês segurou o carro, evitou uma batida no muro, mas pouco conseguiu fazer quanto ao problema no motor. Quatro giros depois e o segundo carro de segurança da prova foi acionado: Nick Heidfeld travou os pneus em freada, perdeu o controle de sua Sauber e, passando pela grama, acertou a Jordan de Takuma Sato em cheio. Susto dos grandes, mas os dois pilotos sofreram ferimentos leves.

Barrichello dominou aquele fim de semana na Áustria (Foto: Ferrari)

A batalha (com muitas aspas) da liderança remetia à música de elevador, tamanha a monotonia. Barrichello permanecia à frente, com Schumacher em segundo. Todo mundo bem definido em suas posições, tranquilidade em cena, vitória brasileira à vista. Mas tudo mudou na volta de número 63 do GP. 

Assim como em 2001, naquela mesma Áustria, Jean Todt ordenou que Barrichello deixasse Schumacher passar. No ano anterior, entretanto, Barrichello abriu a última volta em segundo e o alemão em terceiro – não era uma disputa por vitória, pois. No Mundial de Pilotos, David Coulthard – que venceu aquela prova -, chegava aos 38 pontos com o triunfo. Na terceira posição da corrida, Schumi ficaria com 44. Os dois pontos a mais, portanto, fariam diferença na briga pelo campeonato. Discorde da prática ou não, as ordens de equipe até que faziam sentido em dada situação.

Em 2002, o cenário era diferente. Schumacher havia vencido quatro dos primeiros cinco GPs disputados e já se encontrava com 21 pontos à frente de Juan Pablo Montoya no Mundial. A disputa, na sexta etapa do ano, se mostrava ser qualquer coisa, menos acirrada. Ainda assim, a Ferrari pressionou Barrichello a “preservar os interesses do time”. O brasileiro eventualmente obedeceu – mas só na última reta da última volta. Até porque, Schumacher não tinha ritmo para ultrapassá-lo na pista de maneira “mais natural”.

Hoje, sim. Hoje… sim (Foto: Reprodução)

A torta de climão foi muitíssimo bem servida no pódio, obrigado. Ao som do hino alemão, Schumacher insistiu que Barrichello subisse ao degrau do primeiro colocado. O brasileiro estava visivelmente sem jeito; o alemão, também. O público vaiava, expressava sua insatisfação por meio de gestos, enquanto o futuro heptacampeão mundial entregava o troféu da vitória nas mãos do companheiro de equipe.

“Estou passando por um período muito bom na minha vida. Estou me tornando uma pessoa melhor, um piloto melhor, então não há sentido em discutir. Penso que minha determinação vai me levar a mais vitórias”, disse Rubens. Anos depois, o brasileiro chegou a dizer que “vomitou de raiva” logo após o episódio.

Vai uma torta de climão aí? (Foto: Ferrari)

Episódio este que causou mudanças na Fórmula 1. A partir da temporada de 2003, ordens de equipe explícitas foram banidas – atenção especial à palavra “explícitas”, por favor. Ou ninguém se lembra da mesma Ferrari sutilmente informando Felipe Massa, no GP da Alemanha de 2010, que Fernando Alonso “estava mais rápido” do que ele? De qualquer maneira, a determinação da FIA (Federação Internacional de Automobilismo), então presidida por Max Mosley, perdurou por sete anos.

As repercussões não aconteceram somente no plano do esporte a motor. Lembram da narração de Cleber Machado, no início deste texto? Por um tempo, as palavras do narrador da TV Globo foram vistas negativamente – como uma gafe, inclusive. Hoje, no entanto, há mais leveza. E está longe de ser gafe.

“Ficou muito marcado mesmo. As pessoas lembram muito, passo na rua, as pessoas falam. E eu acho que tem uma divisão de opiniões. Tem gente que acha que foi uma gafe e tem gente que acha que foi espontâneo, que foi muito legal. Não sei a proporção disso. Eu realmente acho que foi uma reação pela surpresa da circunstância, foi espontâneo”, afirmou Cleber ao GRANDE PRÊMIO.

“Eu não sinto muito isso [de ficar marcado na carreira], mas acho que, para o público, sim. Tanto que eu não uso mais. Nunca mais usei. Às vezes, eu brinco, mas não uso, não. Não uso nas transmissões, no futebol. Mas deveria, para agitar”, completou.

Festa do pódio, que de festa não teve nada – a Ferrari foi multada em mais de US$ 1 milhão após o GP da Áustria (Foto: Ferrari)

Ao GP, Machado lembrou de como chegou à histórica narração e trouxe detalhes daquele dia. “Um ano antes, em 2001, no mesmo GP da Áustria, eu não lembro que venceu, mas o Barrichello estava em segundo e o Schumacher em terceiro. E a Ferrari mandou trocar. Aí chegou 2002, eu estava fazendo essa corrida. O Rubinho estava muito bem. Tinha liderado o treino de classificação, largou na pole e vinha muito sossegado em primeiro. Então, durante a transmissão, eu me lembrei do que havia acontecido no ano anterior. Falei: ‘Ano passado, o Rubinho vinha em segundo e o Schumacher em terceiro, mas a Ferrari mandou inverter. Agora, o Rubinho largou da pole, dominou os treinos e está liderando… Acho que hoje não vai acontecer. Até a situação do campeonato é outra e tal. Não precisa'”, contou.

“Então, o Reginaldo Leme, que está comentando, disse: ‘Olha, eu não apostaria nisso’. Mas eu brinquei e falei: ‘Bem, eu vou apostar, a Ferrari não vai fazer isso’. A corrida seguiu, só que o Schumacher começou a se aproximar. A prova já estava no fim. E aí chegou a última volta. Neste momento, você começa a falar: ‘Ah Rubinho, última volta, vai ganhar, treinos livres, pole, corrida impecável. No ano passado, teve de dar passagem…’. E nisso, o Barrichello aponta na reta para ganhar, com Schumacher bem perto. Eu comecei: ‘Hoje não, hoje não…’. Mas aí ele freia, o Schumacher passa e vence a corrida. ‘Hoje, sim’. E eu perguntei em seguida: ‘Hoje, sim?'”, lembrou Cleber.

“No pódio, ainda teve tudo aquilo lá. Agora tem uma cena que eu nunca esqueci. Pouco antes, quando eles param os carros, o Ralf Schumacher passa por eles e olha para o irmão, como quem diz: ‘Pra que isso, hein?’. Ele não falou nada, mas essa expressão me chamou a atenção. A gente descascou a Ferrari. Essa foi a nossa reação.”

O GP da Áustria daquele ano mostrou-se um verdadeiro divisor de águas na vida de todos os envolvidos – incluindo a do narrador da então detentora dos direitos de transmissão da Fórmula 1 no Brasil. Dá para esquecer aquele 12 de maio de 2002? “Hoje não, hoje não”. E paremos por aí.

Barrichello e Schumacher foram parceiros de Ferrari até 2005 (Foto: Ferrari)
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