Ao não ajoelharem, Verstappen e Leclerc deixam claro: F1 de Ecclestone ainda está neles

Ajoelhar ou não ajoelhar é uma escolha que todos podiam fazer. Mas, como quase tudo na vida, ajuda a entender pessoas e situações. Na Áustria, aprendemos que a Fórmula 1 de Bernie Ecclestone mora também nos mais jovens

Todo mundo é contra o racismo. É a frase mais apropriada para abrir esse texto não porque seja verdade, quem quiser impor algo diferente precisa tomar cuidado com o impacto da queda do alto de argumentos que não param em pé. Então, por que a frase é aplicável usada aqui? Porque dizer que é contra o racismo é fácil. O racismo é daquelas unanimidades: é ruim e você precisa ser contra. Assim, toda figura pública vai se dizer contra. Na Fórmula 1, inclusive. Mas palavras vazias voam de lá para cá e param em lugar nenhum. Após as poucas palavras expressadas nos últimos tempos, os 20 felizardos que fazem parte do grid tiveram a chance de uma manifestação concreta ao mundo antes do GP da Áustria. Nem todos aproveitaram. A decepção fica por conta sobretudo dos dínamos da nova geração: Max Verstappen e Charles Leclerc.

Antes de seguir em frente é preciso reconhecimento e identificação. Reconhecimento dos 14 nomes que ajoelharam no grid enquanto todos utilizavam camisetas pretas com a dita ‘end racism‘ – acabe com o racismo, em tradução livre: Vettel, Albon, Gasly, Norris, Pérez, Stroll, Russell, Latifi, Ocon, Ricciardo, Grosjean, Magnussen, Bottas e, claro, o líder Hamilton. A identificação fica a cargo daqueles que preferiram não fazê-lo e lá permaneceram de pé: Verstappen, Leclerc, Carlos Sainz, Antonio Giovinazzi, Daniil Kvyat e o campeão mundial Kimi Räikkönen.

A conversa é espinhosa. Quem cometeu o pecado de falar disso durante o domingo de manhã, recebeu toda a sorte de mensagens durante o dia, a grande maioria pouco educadas. Os tempos, sabemos, são bicudos: o ódio está em alta, a educação está em falta e quem viveu a vida sendo oprimido se vê cada vez mais sufocado num mundo que tenta dizer a todo instante que nenhum lugar aqui é deles. Sabemos quem são os perpetradores do horror e força motrizes da mais recente investida da eugenia. Não são inventores, percebam, porque a eugenia sempre foi cool para alguns, uma garantia da realidade econômica.

E é claro que ninguém vai atirar acusações contra o sexteto de pilotos que se negaram a manifestar, mas o primeiro ponto é que fica difícil entender o motivo de ficar de fora. Quando o movimento de ajoelhar ganhou popularidade no campo do esporte, nos Estados Unidos, em 2016, havia ali um protesto durante o hino nacional. O argumento de que era desrespeitoso à bandeira, o exército ou ao escambau era claramente muxibento, mas serviu de capitalização política e criou um álibi para quem se rejeitasse.

Os argumentos foram desbancados novamente na última onda de protestos globais, nascidos pelo assassinato brutal de George Floyd, homem preto, por um policial branco. Uma morte baseada numa suspeita – que se comprovou falsa – de que tinha roubado um maço de cigarros. Pensa nisso: quase 10 minutos ajoelhado no pescoço de Floyd por um maço de cigarros. As manifestações dos últimos meses serviram para desenhar porque a luta antirracista é inegociável.

No caso da Fórmula 1 e outros esportes mundo afora, não há hino ou possibilidade de revolta substancial, a não ser que contem alguns lunáticos roedores saídos das valas das redes sociais. Que o ato de ajoelhar no grid não faria o racismo acabar no mundo, o que parece ser o argumento principal dos sacripantas do Twitter, todo mundo sabe. A questão é uma demonstração concreta para as dezenas de milhões que assistem cada corrida mundo afora. Na Fórmula 1, a união de figuras de diversos países num carrossel que visita quase todos os continentes – com a África sendo incômoda ausência – é mostra potente.

O mundo está de olho numa resposta que podia indicar: entendemos o recado e estamos aqui, juntos, porque não há alternativa ao antirracismo. Em vez disso, ligou o alerta do ódio. Queiram ou não, o recado passou a ser: o antirracismo é opinião, posso querer fazer parte dele ou ficar distante.

O que se construiu ao longo da história é que o racismo é diabólico e que ou você é uma boa pessoa ou você é racista. É um erro e um desserviço. A afirmação que fazemos é categórica: todas as pessoas brancas do mundo ocidental são racistas. Dentre eles, os seis das canelas esticadas e 12 dos outros 14 – excluímos Hamilton e Alex Albon, um asiático não-branco na Europa. Dentre eles, você, branco, lendo e eu, branco, escrevendo. Somos racistas porque nos beneficiamos de uma sociedade que é máquina de moer pessoas pretas – e todas as outras minorias. Brancos são racistas. A sua decisão é que tipo de pessoa você quer ser: um racista em evolução ou um racista em putrefação.

Porque podemos nos dar ao luxo de ignorar as questões ligadas à desigualdade racial durante a infância, a adolescência, a faculdade, o que quer que seja. Podemos nos dar ao luxo de aprender em momento mais oportuno da vida, adultos, letrados, estudados, quando andamos com nossas próprias pernas. Lewis Hamilton não teve essa escolha. Sentiu na pele desde os mais tenros anos de kart, aposto todo o dinheiro que não tenho que viveu também antes disso. As pessoas pretas são bombardeadas na infância e na adolescência e entendem o problema, mesmo durante a juventude, muito melhor que qualquer acadêmico branco, por melhor intencionado que seja, será capaz um dia.

Conhecer as raízes é fundamental, mas sentir na pele é outro nível. E é por isso que é necessário seguir a liderança de pessoas pretas.

Se Leclerc e Verstappen tivessem se sentido minimamente compelidos a compreender – e tiveram tempo para isso, tenho certeza que sobravam alguns minutos entre uma corrida de videogame e outra no isolamento social -, não precisariam ouvir só Lewis. Podiam ouvir outras figuras, lideranças pretas que militam na luta contra o racismo Que aprendem, sentem e ensinam. E, se fizessem, teriam abraçado a manifestação. Em tempos da revolução da ignorância, porém, a opinião sente-se confortável a contradizer fatos.

A contrariedade ao ajoelhar, a manifestação clara, é vitória do achismo e deleite de quem quer preservar o direito de ser ignorante e, como bom ignorante, está confortável em contrapor fatos com bolhas de sabão. Não só os seis, mas os que se identificam com o esmagamento da razão mundo afora.

Hamilton é um personagem histórico por todas as razões certas, mas é importante reconhecer que não foi a única figura que deu orgulho: Sebastian Vettel, um tetracampeão que ainda não se manifestara, talvez por ser um fantasma das redes sociais, chegou à Austria com o ‘black lives matter‘ estampado no capacete. Vettel é sujeito inteligente, homem feito, vida pronta. Daniel Ricciardo foi outro que se manifestou de maneira mais contundente.

Mas Hamilton tem 35 anos, Vettel tem 33, Ricciardo acabou de completar 31. Mais dia, menos dia, estarão fazendo outra coisa da vida e terão deixado caminho aberto para a geração subsequente. Geração da qual Verstappen e Leclerc despontam como principais nomes, além de ter também Sainz, confirmado na Ferrari em 2020.

A Fórmula 1 impressionou e acertou ao se dissociar das declarações de Bernie Ecclestone dias atrás. Aos 89 anos, o homem que deu as cartas por mais de 30 e transformou o Mundial num fenômeno midiático global fez uma série de afirmações sem base e fundamentalmente mentirosas com relação à luta contra a desigualdade racial. Quando Hamilton respondeu de cara fechada, Ecclestone achou por bem se explicar melhor. Meu argumento favorito dentre os utilizados por Bernie foi que um dia considerou fazer negócios com Anthony Hamilton, pai de Lewis. Contou que Hamilton Sênior fez uma proposta e ele, Bernie, considerou topar. Veja bem, CONSIDEROU, porque no fim das contas não topou e seguiu a vida. Mas, para Ecclestone, o fato de dar ao menos o benefício da dúvida de que talvez estar numa sociedade com um homem preto pudesse ser válido mostra que não é racista, ora! Um verdadeiro ás da justiça social.

Ecclestone, aos 89 anos, não entende, não quer entender e não vai entender.

A Fórmula 1, felizmente, não é mais de Ecclestone. É a Fórmula 1 de Lewis Hamilton, mas um dia não será mais. Quando for a vez de Verstappen, Leclerc ou Sainz assumirem as rédeas, como será?

O que apareceu no domingo foi um fantasma. O de que a F1 de Bernie Ecclestone é uma assombração sempre à espreita, pronta para voltar com novos nomes, uma marca d´água repaginada e baby face de playboy.

Verstappen e Leclerc têm tempo para que consertem rota, entendam o mundo um pouco melhor. Ninguém vai ajoelhar no pescoço deles, que podem viver tranquilamente na segurança de Monte Carlo.

Certamente torço para que aconteça e que ambos anunciem atitudes concretas e se juntem à luta, porque, embora ambos tenham buscado o Twitter para falar de “maneiras diferentes” de ajudar na luta antirracista, ninguém sabe que maneiras são essas. Ainda que elas surjam, porém, não ajoelhar foi um erro e seguirá assim, um erro. Os dois não entendem. Os dois são mais Ecclestone que Hamilton.

E, embora na lógica meramente mercantil a Fórmula 1 de Ecclestone seja um fenômeno, socialmente foi a Fórmula 1 que correu no Apartheid.

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