Guia Fórmula E 2023: Segunda revolução busca frear descarrilamento e salvar futuro

É um momento fundamental para a Fórmula E, que se encontra numa bifurcação. Com o Gen3, corrigir a rota é necessário para que o futuro seja promissor. O Guia Fórmula E 2023 prepara o esquenta para tempos decisivos na categoria

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Faz poucos anos que a Fórmula E se orgulhava de ser a categoria que mais crescia no mundo e já queria esticar o pescoço para se declarar a segunda maior categoria de monopostos do planeta. E não era totalmente sem razão: grandes fábricas encheram o grid de tradição e emprestaram seriedade a um projeto que nasceu arrojado, os pilotos começavam a olhar como uma interessante vida útil pós-F1 e, mais que isso, jovens que não conseguiam o salto para a maior das categorias de monopostos queriam a vaga nos carros elétricos.

Era o crescimento que não parava. Mas esse é o passado: o futuro é diferente. A Fórmula E vai a 2023 com a terceira geração de carros da história, o Gen3, e sabe que precisa alinhar a rota e interromper o descarrilamento dos últimos anos. O Guia Fórmula E 2023 prepara o leitor para o que vem aí no campeonato.

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A primeira conclusão necessária é: como foi que a Fórmula E saiu da queridinha do esporte a motor e dos fãs mais jovens, totalmente desapegados das tradições seculares do esporte, desejada pelas grandes fábricas e carta de intenções para o futuro e virou a maior incerteza do mundo da velocidade em tão pouco tempo?

A virada negativa de chave está ligada diretamente à pandemia, mas não é exatamente culpa dela. Assim que o mundo parou, em 2020, e ficou claro que não daria para seguir o curso do campeonato da maneira planejada, com as corridas em centros urbanos que representavam a alma do evento, a direção resolveu realizar contenções financeiras antes de qualquer outra organização. Queria evitar que, num momento de graves crises, as fábricas gigantes tomassem tudo de assalto e praticamente impusessem a bancarrota às equipes privadas. Isso e, claro, proteger a si própria das pancadas que viriam.

Sem o restante do campeonato e com incerteza do futuro, teve de realizar seis corridas em uma semana, na mesma pista. É o que o público vai lembrar, aquele festival no aeroporto de Tempelhof, nas margens de Berlim, uma das poucas pistas mais afastadas de centros urbanos. Mas a perda dos acordos com as cidades e o corte imediato de toda receita aguardada — que não veio — representaram um baque financeiro e do futuro.

A pergunta era óbvia: como se preparar para os próximos tempos se não dá para saber quando as cidades voltarão a ser centro da esfera pública? Eis que, como num passe de mágica, a fila de cidades, estados e países que gostariam de uma vaga na Fórmula E dissipou-se no ar, como areia no vento.

A Era Gen3 será iniciada na Fórmula E em janeiro. O que esperar? (Foto: Fórmula E)

Como é difícil controlar colossos institucionais, a decisão da Fórmula E de restringir o que as fábricas poderiam produzir para os carros nos anos seguintes foi pensada para proteger, mas acabou colocando um ponto de interrogação imenso e fazendo as multibilionárias companhias refugarem.

Não apenas por terem sido proibidas por uma organização-bebê como a Fórmula E, mas porque o futuro chegou. As mudanças de regulamento técnico no WEC e no Dakar, por exemplo, empreendimentos com muito mais estofo histórico e segurança institucional, permitiram que as fábricas pudessem trabalhar a tecnologia elétrica embalada na Fórmula E para outros campos e novas possibilidades. Aí, a F1 resolveu se abrir para um novo momento.

Com teto orçamentário, promessa de expansão no projeto híbrido e motores menos complexos e mais baratos num futuro próximo, mostrou que gostaria de dialogar com o mundo para o qual se fechou por tanto tempo. A Audi foi para o Dakar, com carros elétricos, e voltou para a F1; a Porsche voltou à F1; a BMW está de volta ao WEC e ao IMSA; a Mercedes tem na F1 a galinha dos ovos de ouro. Outras fábricas que chegaram a se encantar com a Fórmula E perderam o interesse. Como a Peugeot, por exemplo, que também tomou o rumo dos hipercarros do WEC. A Techeetah, colecionadora de conquistas, apenas morreu após um ano se debatendo.

O público jovem, aquele na qual a Fórmula E estava tão apegada e julgava seduzir com novidades artificializadas para as corridas, tal qual um videogame, também correu. ‘Drive to Survive’, a docusérie da Netflix, nasceu popular, mas tornou-se febre absoluta nos Estados Unidos durante o período de isolamento da pandemia. Mais que isso: os pilotos da F1 começaram a investir em transmissões próprias de corridas pela Twitch, a rede dos gamers na internet. Em paralelo, Lewis Hamilton deu o salto para se tornar, de vez, o maior e mais importante ativista esportivo do mundo durante os protestos internacionais pelo assassinato racista de George Floyd, em Minneapolis. Sebastian Vettel também assumiu o papel ativista, diga-se.

Se durante tanto tempo a Fórmula 1 trabalhou para esconder as personalidades que tinha debaixo dos capacetes e dentro dos cockpits, finalmente a realidade mudou em 2020. O Liberty Media, detentor dos direitos comerciais da categoria desde 2017, tinha essa intenção há tempos, mas as circunstâncias é que acabaram definindo. Em tempos reafirmados de culto à personalidade, ter pilotos pessoas reais foi a tempestade perfeita. A F1, enfim, encantou os jovens. Tirou a trincheira principal do público-alvo da Fórmula E.

A categoria elétrica passou a não ter mais os seus principais esconderijos. Se as virtudes eram o crescimento notório entre os mais jovens e o desejo que causava nas companhias por dar a elas a chance de desenvolver uma tecnologia de futuro, aquele 2020 representou um marco. Com nada disso como carta, a verdade é que a Fórmula E passou os últimos tempos vagando em busca de uma identidade perdida. Recuperá-la é obrigação não apenas para retomar o crescimento e vislumbrar sucesso, mas para ter certeza de que há um futuro. Pode parecer duro dito assim, mas é verdade: uma categoria cara e delicada, que aposta em ambientes urbanos que precisam de constante manutenção, não tem margem para muito tempo de desencontro. Alguma hora a fonte financeira seca.

Sem o que havia de bom, aquilo que era ruim foi realçado e o que era contestável passou a gerar gritaria. A temporada 2021 viu quase todo o grid chegar na decisão com chances matemáticas de título, mas como foi que isso aconteceu? Corridas com muitos acidentes pelo fato dos carros serem extremamente grandes em pistas bastante estreitas e um formato de classificação que dificultava os líderes do campeonato. São meios artificiais que podem agradar ou desagradar, mas não são impossíveis de funcionar. É algo diferente, que carrega certo apelo porque há um quê divertido em assistir ao mais absoluto cenário de caos veloz. Para funcionar, contudo, a organização tem de funcionar como frigideira azeitada: suave, sem que haja nada agarrando.

É hora da Fórmula E recuperar uma linha que permita o sucesso (Foto: Mahindra)

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Em meio a um vácuo de filosofia e de quais os caminhos seguir, o modelo artificial de competição é insosso. Está mais para triste que eletrizante, e cada erro, punição pós-corrida e trapalhada da direção de prova, essas na conta da FIA, acabam gerando aborrecimento em um público que já espera fracasso.

É por isso que há animação e preocupação no momento. Porque não há espaço para vagar como um fantasma em busca de luz celestial, ao menos não mais. O Gen3 é fundamental para restabelecer ao menos a correção do que é básico: organização institucional, corridas divertidas e sem cenários caóticos a cada esquina de cada corrida, confiabilidade, custos razoáveis e retomada do interesse do público e da televisão. Esqueça, pelo menos por enquanto, a formação de interesse no que as personalidades dos pilotos têm a oferecer. A F1 comeu essa fatia do público e, para falar a verdade, o grid da FE não é lá exatamente carismático. É importante acertar as bases.

Mas é difícil acreditar que as bases serão bem arredondadas quando o regulamento técnico da temporada fica pronto apenas dias antes dos testes coletivos de pré-temporada. Um piloto, que não quis se identificar, disse ao site inglês The Race que era sinal de amadorismo. E está certo. É mesmo um sinal de quem não está pronto para recuperar o passado auspicioso em meio ao futuro preocupante.

A pré-temporada mostrou questões graves de confiabilidade. Na realidade, as equipes, em geral, não gostaram das mudanças feitas no modo ataque, que agora permite os pilotos a dividirem o tempo disponível com potência maior que a média como bem entenderem. Há um ponto importante: modular a bateria é algo que não passa confiança para ninguém na Fórmula E por enquanto. As novas baterias, produzidas pela Williams Advanced Engineering, apresentaram vários casos relatados de superaquecimento e vazamentos. A Porsche teve de parar um teste privado por conta disso e chegou a ameaçar não ir à pré-temporada, em Valência, temendo pela segurança dos pilotos.

Acabou indo, mas a confiabilidade é uma questão gravíssima. A bateria e a montagem dos chassis ainda são uma dúvida grande. O Gen3 é o primeiro carro da Fórmula E a contar com trem de força dianteiro, mas a reclamação dos pilotos durante os testes é que quaisquer impactos com a parte dianteira do carro acabam fazendo com que o trem de força machuque demais o chassi. Isso casado com o fato de que a categoria entregou pouquíssimas partes substitutas para as equipes, em caso de problema, tem condições de tirar pilotos de corridas até com uma batida moderada num treino livre. Como os carros seguem grandes e as pistas ainda são estreitas — embora haja um trabalho para torná-las mais velozes —, é matemática fácil que o perigo disso acontecer frequentemente é colossal.

É interessante mudar a disposição do motor, instituir super recarga e entregar um carro dito como o mais eficiente do mundo, mas é preciso que tudo isso funcione. Senão perfeitamente, visto que é apenas a primeira temporada da nova tecnologia, que seja esportivamente funcional. É o mínimo. O que se viu nos testes, porém, preocupa. E ainda há a preocupação com a potência geral dos carros, que devia ser a maior de todos os tempos com ampla margem, mas não foi o que aconteceu em Valência. Os carros deram a impressão de serem mais lentos que os anteriores.

Porsche mostrou insatisfação com as dificuldades da organização (Foto: Fórmula E)

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É um ano de definições ainda com relação a quem segue na categoria. DS, Nissan e Jaguar estão confirmadas para o ano que vem, mas a Porsche, não. E toda a preocupação do momento, casado com a dificuldade para obter sucesso, parecem jogar contra. McLaren, Maserati e Cupra – braço de carros de luxo da Seat — chegam, mas ligar o futuro do campeonato a novatas seria ingênuo demais.

A Fórmula E corre contra o tempo para fazer a tecnologia do Gen3 funcionar, e é difícil imaginar que será um carro satisfatório ao menos nas primeiras corridas da temporada, mas é fundamental que ache o caminho do básico rapidamente. Se a categoria já começa a conversar com uma nova divisão da FIA para projetar o que será o Gen4 daqui a três ou quatro anos e quer que as equipes construam seus próprios chassis, algo que soa inacreditável em janeiro de 2023, que ao menos entregue um campeonato saudável. A audiência da TV em 2022 foi melhor que 2021 e 2020, os dois anos de queda após um 2019 interessante. Mas se balizar por isso seria um erro. A Fórmula E tem de ser um produto fenomenal para a TV.

Nesse momento, querer seguir se contrapondo à Formula 1, WEC ou rali é um erro. A Fórmula E não está em posição para isso: quem não sabe nem o que é, não pode estabelecer rivais para se opor. Tem de encontrar o caminho próprio.

O passado de sucesso meteórico é isso, um passado, que tem de ser tratado assim ao menos no futuro próximo. A encruzilhada na qual a categoria se encontra não é para escolher um retorno ao heyday de anos atrás ou ao fracasso colossal. Não é mais isso. É para definir se será estável o bastante para ter um futuro ou se caminhará rumo a definhar como num triste voo de Ícaro. O sol está longe agora.

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